Pessoalidade sem Disrupção
Por Jorge Cruz
“Tsé”, documentário de Fabio Kow, transborda pessoalidade do início ao fim. É difícil não ver nascer ao longo do filme certo apreço pelo projeto do neto de Tsecha Szpigel, imigrante polonesa que passou sua fase adulta no Brasil após fugir da caça aos judeus lideradas por Hitler no período da Segunda Guerra Mundial. Não há mal nenhum nisso, até porque há uma tendência de realizadores em retratar o que há de mais próximo em suas vidas, como se discípulos de Lúcia Murat fossem.
Não está ali apenas a tocante história da senhora Tsé, que ainda criança sobreviveu ao Holocausto após sua mãe lhe arremessar do trem que a levaria a um campo de concentração. Com lamento identificamos que há um levante que exige que tais experiências voltem a ser contadas. Houve um tempo em que filmes sobre os horrores do nazismo eram recebidos com naturalidade nos cinemas, dada a quantidade de obras que se dispunham a debater o assunto. Mesmo assim a sociedade provou que nenhum questionamento da arte é excessivo, já que o ser humano consegue se reinventar na empreitada pela autodestruição.
Quatro longos anos se passaram entre a primeira vez em que a câmera ligada para que Tsecha seja entrevistada e o lançamento em circuito. Mais de um ano da pré-estreia em um shopping em Higienópolis, São Paulo, até que o filme ganhasse, de fato, as salas de cinema. O Brasil em que Kow vivia quando ligou a câmera para entrevistar sua avó pela primeira vez não guarda muita relação com aquele que estende o pôster de seu filme.
O documentário utiliza um recurso cada vez mais presente em filmes do gênero: uma montagem quase toda baseada em imagens de arquivos, não necessariamente vinculadas diretamente à história que está sendo contada. Diálogos visuais e sentimentais com o cinema dos anos 1940 nos coloca diante de Fred Astaire e Ginger Rogers, para que, logo depois, cenas reais de campos de concentração se sobreponham. Esse expediente, que objetiva ampliar a carga emotiva do que está sendo narrado, permite que essa produção supere o simplória material de origem, qual seja, um conjunto de algumas entrevistas com sua avó e seus familiares.
Outros recursos, bem mais desafiadores, se apresentam com bem menos impacto do que poderiam ter. O uso da trilha, por exemplo, é bastante discreto, mas rompe com toda a maneira com o qual “Tsé” é conduzido. Já o uso dos bisnetos da protagonista, ainda crianças, para contar partes bem pesadas da história, joga com a perda da inocência infantil e dá um ligeiro toque trágico a partir dessa encenação. Só que não há um avanço que permita consolidar essas experimentações, que façam ela gerar um resultado. Parece que essa ausência de disrupção, para usar uma palavra que o mundo do empreendedorismo adotou como mote em nossa sociedade cada vez mais meritocrática, é reflexo direto da pessoalidade do projeto.
Ocorre que essas inovações, esses experimentalismos narrativos possíveis, aproximariam “Tsé” da tal disrupção, já que não há aqui um produto tradicional por excelência. Todavia, acaba sendo esse o resultado, por simples opção de seus realizadores, que ventilam possibilidades bem mais atraentes do que um documentário próximo a uma grande reportagem – mas evita usá-los. Sem contar uma montagem comum a reality-shows em que uma pessoa repete exatamente o que a outra falou ou fez momentos antes, como se tentasse apontar para o espectador o que seria mais importante ser lembrado.
Em dado momento, quando as pesquisas no Brasil não se revelam suficiente, o diretor viaja para a Polônia, em uma passagem que rende bem mais do que belas imagens. Ali fica mais cristalino o quão metodicamente pensado foi o documentário, a ponto de nem o rompante de se atravessar continentes quebrar a estrutura cronológica e baseada em entrevistas. Encontra-se um documento quase centenário que se transforma em apenas algumas tomadas do pedaço de papel. Uma teimosia estilística que gera inúmeras frustrações ao longo do caminho, criando mais perguntas do que respostas em nossas cabeças.
Kow entende a dificuldade de dar vida ao documentário, encontra soluções que permitem sua execução, mas as usa com parcimônia. No final, o arco por ele criado, de mostrar o caminhar da menina Tsecha sobrevivendo à guerra, para se tornar “esposa”, refugiada e imigrante é o pacote que ele queria desde o início, permitindo poucas concessões. “Tsé” quer apenas contar uma impactante história do quão mal a humanidade consegue fazer a si mesma.
Quando tenta ir além, superar a mera exposição de fatos, o diretor acaba revelando o grande objetivo do documentário: a busca de um entendimento sobre ele mesmo, sobre como sua família o moldou. Isso transforma o documentário em um círculo vazio, como se tivesse criado um furacão, mas retratasse o mesmo a partir de seu olho, buscando organização e calma em um ambiente em que a mensagem só é percebida se vier carregada de caos e destruição.