Truth or Consequences
Verdade ou Consequências
Por João Lanari Bo
“Truth or Consequences” é o título do documentário scifi realizado por Hannah Jayanti, uma talentosa diretora com ativa prática organizacional: seu trabalho se auto-define como “a co-criação de espaços que modelam práticas anticapitalistas, enquanto geram futuros surpreendentes”. Neste caso, o futuro surpreendente é aqui e agora: “Truth or Consequences” é o nome de um vilarejo de pouco mais de 6 mil almas no Novo Mexico, um estado no sul dos EUA, seco e árido, que faz fronteira com o Texas e, claro, com o México. Foi nele que Hannah resolveu rodar seu filme social-decadente-futurista: originalmente, a cidade chamava-se “Hot Springs”, tradução de nomenclatura indígena. Em 1950, Ralph Edwards, popular radialista do programa de perguntas/respostas da NBC, o famoso “Truth or Consequences”, anunciou que transmitiria o 10º aniversário da emissão na cidade que aceitasse se renomear com o título…do próprio programa! E “Hot Springs”, num acesso de delírio midiático, aceitou: mudou oficialmente seu nome em 31 de março de 1950. Para demonstrar sua apreciação por esse gesto cívico sem precedentes, Ralph Edwards visitou a cidade todos os primeiros fins-de-semana de maio durante os 50 anos seguintes, inserindo-a no circuito turístico. A atração favorita dos que se aventuram por lá são as termas: as águas geotérmicas borbulham, a área era considerada um local sagrado de cura pelos povos Apache que habitavam a região. O futuro, entretanto, pode ser mesmo surpreendente: A Virgin Galactic, a primeira empresa a oferecer pacotes de turismo espacial, decidiu colocar sua matriz principal a 25 milhas ao sul de “Truth or Consequences”. E mais: a matriz fica no primeiro espaçoporto do mundo, construído para hospedar empresas privadas de voos espaciais comerciais, o Spaceport America. Por enquanto fazer uma viagem dessas é para os happy few, dispostos a pagar 200 mil ou mais dólares por alguns breves momentos de suspensão gravitacional e, quem sabe, se curar de alguma coisa. Em 15 de agosto de 2019, a Virgin Galactic chamou a imprensa para conhecer as instalações do espaçoporto e asseverou: estamos prontos para operações espaciais. Logo, portanto, o preço da viagem deve cair e uma nova onda de turistas vai invadir a tranquilidade da pacata cidade do Novo México.
E o filme? A fantasmagoria espacial aparece nos assépticos planos gravados no interior do espaçoporto, às vezes combinados com imagens das simplórias residências dos 4 ou 5 personagens selecionados para entrevistas imersivas. Os interiores dessas casas, algumas trailers, passam por efeitos visuais rudimentares que simulam um além-mundo, um outer space. “Truth or Consequences” é uma produção independente, não se trata de seduzir o espectador com piruetas computadorizadas, o que interessa é trabalhar a imagem como um espelho geológico, um registro de temporalidades. A narrativa implica que a maior parte da população já se foi: estamos assistindo, nesse documentário-ficção-científica, aos anos incipientes de uma cidade fantasma. Os 4 ou 5 cidadãos e cidadãs que ficaram, por uma razão ou outra – lealdade, perda, derrota ou apenas teimosia – tornam-se uma espécie de profetas desdramatizados do apocalipse, contando suas histórias por meio de reflexões, fotografias antigas, memórias, novas perspectivas e insights. O processo é um tanto errático – foram três anos de produção e captação – provocando eventual desconforto na audiência. As pessoas entram e saem da obscuridade, vem e vão na linguagem: passamos de uma meditação sobre as propriedades das rochas locais, que brilham com cores ocultas – mas apenas sob as condições adequadas – para uma exposição sobre o valor dos pequenos dejetos (um dos entrevistados mantém uma coleção assombrosa de quinquilharias). Uma viúva idosa, ex-proprietária de circo, reconcilia-se com o tigre que a atacou e o marido que faleceu: o passado me lembra coisas que liberei da minha juventude, meu agora é apreciar o agora. O colecionador de dejetos não deixa por menos, enquanto cava em um velho lixão à procura de tesouros abandonados: apenas arranhamos o chão ao nosso redor, a compreensão real leva tempo, o significado real deriva de paciência e trabalho.
Tudo não passaria de ilusões, do espaçoporto ao desamparo dos personagens, mas alguém lembra, repentinamente, de um princípio de realidade: do outro lado da montanha que se avista da cidade, está o marco zero da primeira explosão de bomba atômica do mundo, em 16 de julho de 1945. A região, que as forças armadas americanas utilizam desde pelo menos 1930, é conhecida como White Sands Missile Range – simplesmente a maior e mais ampla base militar dos Estados Unidos da América, com 8.300 quilômetros quadrados. “Truth or Consequences”, o modesto registro documental de meia dúzia de dropouts do sistema, estava o tempo todo ao lado dessa loucura. Welcome to New Mexico!