Transversais
Resistência e censura
Por Vitor Velloso
“Transversais” é um documentário que enfrentou forte resistência do atual governo brasileiro, já que o tema é tido como objeto de ofensa para o mesmo. O filme dirigido por Émerson Maranhão narra a história de cinco pessoas que possuem a vida atravessada pela transexualidade, de maneiras distintas. A projeção acompanha as personagens e retrata as diferenças de classes, ocupações e vivências, especialmente nos depoimentos que envolvem as relações com os pais. Neste sentido, é interessante como a montagem é capaz de concentrar a gama de entrevistas, confissões e desabafos, sem perder a consciência de como essa organização é fundamental para que o espectador possa compreender as dores individuais como fruto de uma questão que deve ser debatida junto à sociedade.
E é justamente aí que “Transversais” ganha força, jogando luz em um tema que ficou cada vez mais visado pela ala conservadora que avança no Brasil, mas tratando o assunto para além de uma moral que procura resistir e encontrando formas de diálogo que só podem ser polemizados por quem não se dispõe à escuta. Por essa razão, quanto mais avançamos no filme, mais fica claro que o mesmo não propõe apenas uma forma de traduzir um problema geral nas cinco figuras centrais: Samilla (funcionária pública), Érikah (professora), Caio José (enfermeiro), Kaio Lemos (antropólogo e pesquisador) e Mara mãe de uma mulher trans. Os personagens contam suas histórias de enfrentamento de situação transfóbicas, dificuldades de aceitação familiar e conquistas, a partir de um documentário que não se propõe à fórmula expositiva, já que o material captado e o arquivo são capazes de criar uma dialética capaz de confrontar as distintas realidades à um mesmo centro. Ainda assim, não existe uma racionalização que impeça a emotividade no espectador, pelo contrário, as inúmeras reflexões provocadas podem ser vistas nessa relação que se repete à exaustão no país. Por essa razão, a conexão dessas histórias é formalizada por uma câmera que se posiciona de maneira similar em cada situação, sem julgar possíveis emoções que se transbordam, nem mesmo distinguir os sofrimentos a partir das trajetórias.
Neste tópico, “Transversais” pode demonstrar que as classes de cada personagem, moldam parte dessa opressão social, mas falha em explicitar como essa materialização de um conservadorismo e de uma moral em decadência pode afetar a totalidade dessas situações. Essa proposta acaba fragilizando a construção de um cenário concreto, isolando brevemente determinadas situações. Ainda que a montagem se esforce para fugir dessas amarras e procure desenvolver as congruências, ainda que faça a distinção com o auxílio dos depoimentos em si, o trabalho acaba pendendo para uma exposição que aglutina pelo afeto, mas desliza ao sair de um certo lugar comum dos últimos anos. Mesmo que a fotografia seja capaz de expandir essa discussão com versatilidade na imagem, reconfigurando a abordagem e procurando iluminar rostos que se mantiveram na sombra por tantos anos, esse processo demonstra uma dificuldade na assimilação das histórias. Uma das razões disso, é que a ideia original eram cinco episódios para televisão, mas a tentativa de proibição por parte do Governo Federal, obrigou o produtor Allan Deberton (Diretor de “Pacarrete”) e Émerson Maranhão, diretor do documentário à realização de um longa-metragem. A investida contra a cultura reforçou a capacidade de reinvenção no audiovisual e permitiu a maior circulação da obra, que ainda pode ser conseguir distribuição e exibição na televisão (em formato de minissérie inclusive).
Longe de possuir apenas méritos nos recentes acontecimentos políticos no Brasil, “Transversais” se apresenta como uma obra consciente da responsabilidade de criar esse jogo dialética entre o particular e a totalidade, capaz de empatia e sem apelar para maniqueísmos, consegue emocionar o espectador pela realidade de um país consumido em intolerância. E um dos méritos dessas narrativas e depoimentos, é justamente reforçar que essa opressão está longe de ser encerrada no âmbito familiar, algo que a linguagem demonstra muito bem ao acompanhar cada personagem e seus ofícios, mesmo que a voz seja um registro de outro momento. As falas de Mara podem ser avassaladoras para um contexto em que a solidariedade e a união das pessoas pelo direito de vida das demais, neste caso a filha, é uma necessidade.
Neste caso, uma das falas ao longo da projeção deixa claro que “Uma aceitação de meia boca não é aceitação” (fala adaptada) e que se alguém se incomodar com o que é visto em “Transversais” o problema não está na comunicação, mas sim na recusa da mesma.