Traição
Red Magic Woman
Por João Lanari Bo
Festival de Veneza 2012
A atriz alemã de cabelos vermelhos, Franziska Petri, é a estrela que organiza (e desorganiza) a narrativa desse thriller instigante do russo Kirill Serebrennikov, “Traição”, de 2012. Às vezes somos pegos de surpresa com a excessiva teatralidade de gestos e expressões, que podem sugerir um tom absurdo aos olhos do espectador desprevenido. Ela, traída, acaba sofrendo com a morte do marido, e raspa o corpo com uma navalha sutil, porém afiada; no funeral, aparece com uma blusa preta, transparente e sensual, e beija o ex na boca, sensualmente. Mas ela é fria: é cardiologista, atende homens, ausculta seus corações. De repente, corre pelo bosque nevado, encontra uma bolsa preta com alguns trapos, sem hesitar muda para as roupas que encontrou e sai para uma nova vida. Anos se passam: ela suturou uma passagem de tempo, cinco anos. Um crítico russo notou, sobre as mulheres no filme de Serebrennikov: parecem ser uma espécie de seres extraterrestres, ora divinos, ora infernais, dotados do mais alto conhecimento, que compreenderam certa essência da ordem mundial inacessível ao homem. O casting feminino é particularmente eficaz para construir esse novo mundo: a “traidora” é a popular cantora Albina Dzhanabaeva, apresentadora da TV e conhecida por ter feito parte do grupo ucraniano “VIA Gra”; e a investigadora é a premiada atriz letã Guna Zarina, desapaixonada, implacável e irônica.
A trama é uma sofisticada mescla entre frieza da insensibilidade e esterilidade do vazio. Em uma cidade desconhecida, moderna e impessoal, não está claro quando, por acaso, no consultório médico da cardiologista, eles se encontram. O encontro é acompanhado por um diálogo, curto, cortante, direto: A médica fala: “meu marido está me traindo”; “Eu simpatizo”, responde ele, deitado e prestes a um eletrocardiograma. Ela arremata, sem alterar o tom de voz: “está me traindo com sua esposa.” Essas palavras assassinas, logo no início do filme, detonam uma vertigem mortífera, uma verdadeira pantomima da morte, cujas referências são, como de hábito, o ciúme, a paixão, a sede de amor, o medo da solidão. “Traição”, afirma o diretor, é inspirado em fatos reais. “Não mostramos assassinatos no filme: às vezes, um pensamento pode ser um assassinato, e o que está na cabeça pode ser pior – pode se transformar em realidade”, completa. O mundo em que trafegam os “traidores” é uma zona de desastre – um terremoto ou um tsunami – e também um mundo de coincidências, inexplicáveis ou não, qualquer imprevisto pode acontecer, a cada segundo. Uma pressão terrível, uma tensão que pode levar à morte. O filme de Serebrennikov, com ambientes hiper modernos, clean, mas também com bosques e chuva, cria um espaço, com tudo isso, mental.
Os homens aí, infantilizados, são como escravos, submetidos aos ditames do devir. Ele, o paciente que se confronta com a verdade da cardiologista, é indeciso, duvidoso, incapaz de reconhecer o óbvio e incapaz de conter o fugaz – e interpretado pelo macedônio Dejan Lilich. Acaba convencendo-se que o amor trará felicidade e, portanto, justificará qualquer traição. Em um país marcado, como é sabido, por uma exaltada visão do exercício da masculinidade, um enredo como “Traição” não é trivial: o filme, bem recebido no Festival de Veneza, despertou reações contraditórias na audiência em casa. E não é para menos: a descrição do ambiente que gera esse tipo de recepção pode ser conferida pelas declarações do Presidente Putin, em 2019, ao Financial Times; “os liberais não podem simplesmente ditar qualquer coisa a alguém exatamente como vêm tentando fazer nas últimas décadas … a ideia liberal tornou-se obsoleta. Ela entrou em conflito com os interesses da esmagadora maioria da população”. Para ele, a diversidade de gênero e o multiculturalismo causam a alienação dos valores tradicionais – “mais estáveis e mais importantes para milhões de pessoas do que essa ideia liberal, que, na minha opinião, está realmente deixando de existir”.
Kirill Serebrennikov, profícuo diretor de cinema, teatro e ópera, paga caro pela independência: entre outras, deu sua opinião (contrária) à prisão do grupo punk Pussy Riot; e contrária também à anexação da Crimeia pela Rússia, em 2014. Em 2017, pegou prisão domiciliar por desvio de 2 milhões de dólares de um projeto teatral, Platforma, financiado pelo Estado: ele nega e considerou a acusação “absurda e política” (Putin se deu ao trabalho de refutar publicamente, afirmando que “o caso contra Serebrennikov não tem motivação política”). Em 2019, o diretor foi liberado da “prisão domiciliar”, mas sem poder sair de Moscou. Foi impedido de participar em Cannes não uma, mas duas vezes – a última este ano, 2021, com seu filme, “Petrov’s Flu”, em competição. Desnecessário enfatizar, a cada interdição irracional quem ganha é o marketing das produções de Serebrennikov.