Todas as Cores da Noite
A burguesia e os crimes sem castigo
Por Paula Hong
Na longa introdução de “Todas as Cores da Noite” (18 minutos), Pedro Severien sobrepõe o magnetismo da palavra através narração em voice-over para sugerir imagens e sons inebriantes, cercadas por uma aura fantasmagórica de um passado em que o punitivismo alcança os crimes de uma certa burguesia que se ancora na tendência de escapar de crimes sem castigo. Mas o remorso tardio é sucedido pela justiça revestida de vingança que a alcança no tempo certo.
Por isso, o entusiasmo com o filme decai à medida que o desenrolar da narrativa é desprendido da solidez construída na introdução. Embora tenha preservado a essência desenvolvida na história de Tiara (Giovana Simões), uma jovem médica no início de carreira, cujo tom reverbera como uma lenda urbana, Severien não consegue manter o mesmo nível de trabalho colocado nas narrativas subsequentes de Íris (Sabrina Greve), Fernanda (Brenda Lígia), Elga (Sandra Possani) e o Homem Morto (Rômulo Braga), através das quais quem (ainda) está vivo ganha espaço para dar o testemunho de sua história.
O que não acontece com Tiara. Sua história é contada por Íris, amiga de infância. Os acontecimentos que levaram ao seu fim são narrados a partir de verbos constantemente conjugados no passado. Apoiado, portanto, sobretudo na palavra, o desfecho violento de Tiara transmite um senso de justiça que não alcança outros personagens. De todo modo, o ponto de convergência que traz unidade e que rege a obra é o crime, a violência que respinga em espiral pelo restante de “Todas as Cores da Noite”.
No espaço de um apartamento luxuoso de frente para o mar, tal temário remenda as breves narrativas, como contos, inseridas como camadas que se desenvolvem a partir do primeiro plano. A câmera na mão flutua nas cenas iniciais da introdução, mas é substituída por planos mais estáticos, alongados pelo olhar fixo e vazio de Íris. Ela reflete a respeito do impacto que Tiara teve sobre ela, como as atitudes e os comportamentos condenatórios da amiga exerceram forte influência no modo como os seus progrediram e os tornaram justificáveis, mas ao mesmo tempo sem entender como uma vida perfeitamente orquestrada pelos maiores privilégios a levou até ali.
Talvez um dos maiores méritos do filme esteja na atuação verborrágica e de monólogos fornecidos pelo roteiro. Pedro Severien é, antes de tudo, escritor, e isso é explicitado no longa-metragem. Cada personagem tem para si o tempo necessário para contar ou fabular a sugestão de imagens ancoradas pelo que as palavras são capazes de suscitar, defendendo seu lado e projetando culpa àqueles que deixaram suas marcas. O espectador se alimenta do que vê e do que escuta, embora os dois sentidos sejam estimulados por elementos cinematográficos usados para causar estranheza e confusão, borrando, assim, o que separa o tempo corrente do filme — ou seja, a realidade criada — e o fantasioso.
Isso é transmitido pelas imagens que se dissolvem e se confundem com sons extra-diegéticos, causando assombro na atmosfera beirante à fantasia para imolar a presença onipresente de uma loucura que governa as impulsividades violentas e criminosas ecoantes das histórias. Os planos longos, sustentados por planos em sua maioria estáticos, amplia um tempo que extrapola àquele original do filme. A carga sonífera atravessa os 70 minutos de duração que vez ou outra, como nas cenas que mostram os atos criminosos e questionáveis de Tiara, é interrompida.
De todo modo, há um experimentalismo sólido em “Todas as Cores da Noite” que faz do filme alguns momentos e cenas interessantes. Duas delas sendo quando Fernanda, uma mulher negra, e Elga, empregada doméstica, voltam-se contra Íris, recusando-se a acobertar ou limpar a cena do crime naquele apartamento luxuoso. Cada uma batendo de frente contra a egocentricidade e crueldade que a sua vida permite exercer, conferindo-lhe impunidade ilimitada.
A cena final do filme não satisfaz uma expectativa de justiça levantada na introdução para então ser dissipada ou fracamente trabalhada no decorrer do longa. Pelo contrário: o desconforto é assertivo, mas para um filme que se constrói a partir da violência, o desfecho é escolhido para apresentar uma satisfação questionável a Íris. À certa altura, estamos embriagados pela dilatação do tempo acoplado à envergadura decrescente do ritmo do filme, nos fazendo perguntar como chegamos até ali.