O último Pub
A salvação está no simples conserto de uma letra
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Cannes 2023
A característica marcante do realizador britânico Ken Loach é pautar suas obras na problematização das questões sociais, por uma narrativa intimista que foca o micro para estudar as causas e consequências do macro. É como se fosse documentário em forma de ficção, cujas histórias pelo viés pessoal versam sobre as necessidades básicas de sobrevivência de indivíduos que convivem num sistema desumano, burocrático e nada empático. E numa sociedade de participantes com controversas ideologias individualistas, contidas na intolerância extremista ao próximo. Cada uma de suas personagens, tanto os perseguidos, quanto os excluídos por suas minorias, precisa encontrar por si só a resposta e solução para driblar as adversidades e as dificuldades do simples fato de existir nesse mundo cão. Em “The Old Oak”, exibido na mostra competitiva a Palma de Ouro do Festival de Cannes 2023, a condução da trama não poderia ser diferente. Desta vez é apresentado ao público uma história de refugiados sírios em um Reino Unido mergulhado em comportamentos xenófobos. Este pode até ser considerado uma versão de amizade à moda de “Romeu e Julieta”, de William Shakespeare, num contemporâneo que clama por empatia, solidariedade e respeito ao outro.
“The Old Oak”, com roteiro de Paul Laverty (que sempre trabalha com o diretor, como por exemplo em “Eu, Daniel Blake”) é o que chamamos de um movimento de um homem só. Uma andorinha que resolveu ajudar a uma dessas necessitadas sírias sem esperar nada em troca. Um ato de humanidade que transcende a ideia do altruísmo. Aqui, nessa crônica fabular política-social, uma simples ação pode mudar literalmente o mundo. De um lado, os Hooligans, “rebeldes do bairro” radicais que querem “conviver” apenas com seus “iguais”. Do outro, um universo inteiro de pessoas diferentes e plurais em suas geografias, línguas e costumes. Uns ofendem, partem para a agressão física. Os outros, pacíficos, acolhem e entendem a Via Crúcis desses seres em processo de desintegração. Não se sabe se por causa do clima sempre nublado, mas há uma raiva entranhada nos britânicos. Não se sabe se é por causa da monarquia, mas há uma grosseria verbal. São brutos e cúmplices nessa troca de palavrões.
Sim, Ken Loach consegue criar sua típica atmosfera sensorial. Nós sentimos a vulnerabilidade e o medo da personagem, entre pedras, cuspidas e câmera quebrada. “The Old Oak” segue sua narrativa por sutis metáforas. A trama acontece em um antigo e tradicional pub (bar) de uma cidade mais interiorana britânica. A letra K do Oak está solta e precisa ser fixada. Isso é a mensagem: ao consertar a letra, aceita-se o mundo novo. O “vento sempre sacode a liberdade” e o passado. O argumento é sempre o mesmo: “proteger a vila da especulação imobiliária”. De uma possível gentrificação, tendência que mais cresce no mundo, para que haja uma padronização dos lugares. Todos ali querem “proteger memórias” nos “novos tempos”. E se precisar de “selvageria primitiva”, que venha a “selvageria primitiva”. Quem já viu o seriado “Ted Lasso” consegue compreender melhor o ponto de vista que quero abordar. Mas vamos ser empáticos e até mesmo “advogados do diabo”. Cada um ali também é fruto de um meio, que ininterruptamente incute neles o efeito manada. De seguir o imaginário popular e de massa. É um círculo vicioso e não é fácil quebrar “desejos” já internalizados. Há um pensamento geral de que os “fins justificam os meios”. De que quebrar um câmera é uma reação natural ao impulso de se manter fiel às crenças. Ali, se alguém age, outro revida e assim não se para nunca, estendendo-se a consequências extremas e trágicas.
“The Old Oak” é um filme de humanitarismo social. Mas ainda que tenha conversas, brigas e embates mais políticos, e ora alienantes, não tem uma narrativa didática. Este longa-metragem é sobre caridade, sobre os perigos de se alimentar uma mente limitada, numa inexplicável violência gratuita (“Eu não sou racista, mas.”, alguém contra-argumenta). Quem lembra do livro e do filme “Laranja Mecânica”, de Stanley Kubrick, pode ampliar compreensão dessas causas e consequências. Sim, “The Old Oak” pode sim soar e se comportar como um filme de autoajuda, em que “gentileza gera gentileza”, em que oportunidades de trabalho são oferecidas, sim, mas o tom aqui vai por outro caminho: o do realismo sentimental sem apelar a pieguices e sentimentalismos comuns. É o eterno embate entre provocação e esperança. “No lugar de palavras, só comida”, lembra-se. Pois é, Ken Loach talvez seja no momento o cineasta “John Lennon”, por pregar a paz em um mundo do agora ávido por guerras. Será que foi isso que aconteceu com os dinossauros? Estamos voluntariamente cavando nossa própria extinção? Vivemos no mundo perdido de “Lost” em que este já é nosso próprio limbo e inferno? Pois é, ainda que “The Old Oak” seja um pouco mais convencional, sentimental e mais óbvio que os outros filmes do diretor, ainda assim é um soco em nosso estômago como humanos imperfeitos in-work-progress.