The Climb
Feitos um para o Outro
Por Jorge Cruz
Durante o Festival do Rio 2019
Já cantarolava Miley Cyrus em sua transição para artista pop de personalidade própria: “o importante não é o que está esperando do outro lado, mas sim a escalada“. A canção também se chamava “The Climb“, como lembrou a espirituosa voluntária que trocou esse ingresso da sessão da Mostra Expectativa no Festival do Rio 2019, período marcado por uma escalada de filmes de uma semana em que eles são empilhados em sequência. Aproveitar o caminho também parece ter sido a proposta dos roteiristas e atores Michael Angelo Covino e Kyle Marvin (o primeiro também estreando na função de diretor de longa-metragem).
O filme tem início em uma cena que serve tanto como esquete quanto como curta-metragem autônomo – e de fato é, de acordo com a filmografia oficial dos realizadores. Fazendo o que parece ser um dos trechos do Tour de France, os amigos Mike e Kyle (reproduzindo os verdadeiros nomes do elenco) gastam o que sobrou de fôlego para chegar à parte mais alta do trajeto. Na momento mais agudo da subida, Mike decide contar que tem um caso com Kyle, noiva do amigo. Os desdobramentos cômicos e ligeiramente dramáticos da cena criam a imediata sensação de que estamos diante de um dos melhores filmes indies do ano.
A estrutura de “The Climb” permite não só o equilíbrio entre drama e diversão como alguns outros pequenos exercícios de cinema de Covino, principalmente nos diversos planos-sequência. Esses se revelam com níveis e formas de dificuldade distintos, seja pela quantidade de personagens, duração e mudança de cenário. Se desenvolvendo em cenas numeradas e marcando períodos espaçados da vida dos personagens, parece beber na fonte da narrativa de Nora Ephron em “Harry e Sally: Feitos um para o Outro” (1989). Só que ao invés do par romântico estamos diante de uma dupla de amigos.
Parecia que o longa-metragem explicaria o ciclismo como atividade/clube. Um esporte que transita entre as horas de solidão e a parceria para superar obstáculos. Porém, o filme vai além dessa metáfora e das belas imagens do interior da França. Nos coloca em outros cenários, sempre construindo um novo argumento que se desenvolverá naquela sequência. O elemento de ligação é a personalidade imutável dos dois protagonistas. Mantendo uma forma de se comportar muito mais espontânea, eles fogem da polidez de determinadas situações, como, por exemplo, no enterro de um ente querido. Esse gatilho cômico, que não chega a ser uma comédia de absurdo, funciona até o final – o que parece corriqueiro, mas não é, sendo mais comum que a repetição da fórmula se desgaste dentro da obra.
“The Climb” é mais um produto de uma geração de autores entre 30 e 50 anos que bebe na fonte de Woody Allen, um expert em idealizar relacionamentos baseados na neurose e à beira de uma nova decepção. O reflexo disso é que uma obra que tinha tudo para arrebatar o coração do espectador há dez ou vinte anos atrás hoje se mostra incompleta. Focado apenas na relação entre dois amigos (como não poderia deixar de ser), traz personagens femininas unidimensionais, que servem de mola propulsora apenas com seus comportamentos rabugentos ou histriônicos. Essa redução de personalidade, com forte tendência de generalização, prejudica a experiência. Mesmo aceitando que a história não teria como ser contada de outra forma e que essa sensação é reflexo direto da maneira como as coisas são colocadas na sociedade, não deixa de incomodar.
Na cena com o plano-sequência mais difícil, que ainda faz uma espetacular homenagem ao Cinema, o filme flerta com esse problema por ele mesmo criado. Parece dizer que tem consciência de que sabe o que se passa ali, mas não se preocupa muito. Talvez um Woody Allen no auge da forma, quando os debates da sociedade ocidental eram por ele acompanhados, atraísse em algum momento essa questão e a tornaria um objeto do humor tão bem construído.
As atuações de Covino e Marvin trazem o equilíbrio necessário para o envolvimento do público. Dando vida ao seu próprio texto e acreditando no que está sendo dito, observa-se um trabalho revestido de humanidade, mesmo que por vezes Kyle denote uma falta de evolução de comportamento, como se não aprendesse com os erros do passado. Isso o aproxima de um personagem de sitcom, que precisa entregar a piada que a platéia está inconscientemente esperando.
A música como elemento conector e transitivo reforça a pegada indie de “The Climb“. O roteiro ainda supre a demanda dos necessários “filme de Natal” que os norte-americanos tanto amam. No plano-sequência mais interessante no quesito desenvolvimento do texto, uma noite que começa alegre e termina melancólica. Aliás, a construção naturalista dessas cenas deixa o cansativo “Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)” no chinelo. Uma desenvoltura de câmera, que passeia tão sutil e decidida que torna todo o filme muito agradável de assistir. Dirigido pelo próprio ator principal, a marcação bem definida dos espaços é outro complicador que o filme tira tão de letra que é quase imperceptível.
Aos poucos “The Climb” vai se tornando um pouco documental, em novos exercícios das funções de direção e roteiro pela dupla Covino-Marvin. Não fosse esse contraponto exagerado de homens flexíveis, adaptáveis e com relações de amizade revestidas de cumplicidade e perdões imediatos com mulheres sempre à beira de um colapso, a produção seria daquelas a serem emolduradas. Sua qualidade técnica e maneira propositiva de inovar a linguagem já com o bloco na rua é notável. A pitada de sentimentalismo ao final já era esperada e a conclusão com a mensagem de que o pai não deve projetar suas incapacidades e frustrações no filho são bem clichês e reforçam a sensação do “filme de hominho”.
Por dialogar mais forte com um grupo hegemônico, não há condições de colocar “The Climb” em um pedestal. Mesmo assim, é uma obra a ser revista ao longo do tempo, seja para aplicar novas questões que surjam, seja apenas para espantar o mau humor.