Tesouro Natterer
Era um homem de seu tempo?
Por Vitor Velloso
Durante o Festival É Tudo Verdade 2024
Johann Natterer, naturalista austríaco que realizou uma longa expedição no Brasil, foi o responsável por levar milhares de itens para seu país natal, hoje, devidamente conservados em um museu de Viena. “Tesouro Natterer”, de Renato Barbieri, procura seguir os passos do naturalista, acompanhando o biógrafo de Natterer, Kurt Schmutzer. Essa estratégia de estruturar o filme como uma retomada dos passos do protagonista ausente, é interessante para que possamos revisitar os locais por onde ele passou e tomarmos conta da diferença entre as paisagens, das mudanças sociais e urbanas, e claro, do trabalho do naturalista. No fim da crítica, há uma referência acadêmica para quem se interessar em ler mais sobre o pesquisador.
Contudo, “Tesouro Natterer” persegue um objeto cinematográfico com camadas complexas de discussão, especialmente na relação entre as diferentes formas de concepção de representação e preservação, sem conseguir dar conta de expor questões críticas, particulares ou não, desse próprio objeto. Ou pior, sem interesse em fazê-lo. Se nos primeiros minutos do documentário, há uma contextualização de um encontro entre o professor indígena Hans Kaba Munduruku, da Aleia Katõ, rio Tapajós, Pará, e uma Antropóloga Cultural, Claudia Augustat, em visitação ao Museu do Mundo em Viena, onde Claudia cita o incêndio do Museu Nacional e parece haver uma espécie de negociação de retorno de alguns desses itens à etnia indígena, em um segundo momento o projeto está mais preocupado com o fascínio de Schmutzer por Natterer e os caminhos percorridos pelo naturalista. Essa dissociação entre blocos apresentados pelo filme, que são abandonados sem um propósito claro, e as possibilidades que se apresentam para discussão, transforma a experiência do documentário em uma grande frustração. Em determinado momento, vemos a banda folk de Schmutzer tocando, temos uma cena dele “comprando” um cavaquinho, tocando, mas não há exatamente um propósito para essas imagens.
Não por acaso, o esforço da obra em construir um didatismo que realmente apresenta ao espectador todo o trabalho realizado por Natterer e a riqueza dos itens preservados em Viena, parecem se distanciar para que haja uma interligação entre Brasil e Áustria, com trechos do diário de Natterer lidos em sua língua nativa. Soa contraditória a forma como “Tesouro Natterer” é estruturado, pois mesmo quando decide apresentar um fato histórico grave de seu personagem, que comprou escravos para ajudá-lo em suas pesquisas e explorações no Brasil, parece estar preocupado em imediatamente voltar a falar de seus feitos para continuar uma grande apresentação desta expedição. Por essa razão, existe uma escolha estética de trabalhar com pinturas que representam os lugares por onde Natterer passou, mostrar Schmutzer comprando objetos semelhantes aos que o naturalista levou para Viena ou mesmo de utilizar uma animação para ilustrar como foi esse trajeto. Esses segmentos com animação tem como mesmo objetivo ilustrações em livros infantis, expor algo que está parcialmente descrito no texto, mas aqui, o diário já descreve tudo, então a opção pela animação apenas reforça o didatismo que Barbieri procurou imprimir na obra, com eficiência, ainda que muitas vezes torna-se burocrático, já que segue uma cartilha de remapeamento bastante engessada, quase mimética.
Mesmo que seu objeto seja realmente fascinante, “Tesouro Natterer” parece fugir do conflito com uma frequência que chama atenção, sempre evitando polêmicas, tangenciando discussões de suma importância, especialmente para os dias contemporâneos e flerta com alguns dos piores tiques do documentário programático televisivo, ainda que procure criar uma espécie de mapa cultural, repleto de atravessamentos, quando expõe seus personagens em cartelas didáticas. Com músicas dramáticas e breves encenações para criar uma narrativa que seja mais envolvente, o filme perde de vista uma série de debates que se apresentam e apesar de possuir algumas ideias interessantes, como mostrar a representação que foi feita dos lugares na época e comparar imediatamente com as paisagens atuais, não consegue se sustentar como uma obra crítica, deixando escapar, inconscientemente ou não, quase todas as vezes, temas e debates seríssimos para a sociedade.
“Johann Natterer (1787-1843) chegou ao Brasil junto com a comissão científica que acompanhou a Princesa Leopoldina na ocasião do seu casamento com D. Pedro I. Nessa mesma comitiva, vieram 14 outros integrantes, cada um com cargos e funções definidas […] O projeto inicial planejado por Schreibers, chefe do Gabinete de História Natural de Viena e responsável pela comissão, estimava uma permanência de dois anos nas terras americanas e previa um deslocamento que incluía as atuais regiões do Nordeste, Sul e Centro-Oeste do Brasil. Os membros da comissão receberam instruções claras sobre o que deveriam observar, coletar e enviar para Viena. Compunham o conjunto de orientações as “Instruções de serviço”, escritas por Schreibers; e a lista de itens, solicitada por Humboldt e Blumenbach. A esta última interessava dados estatísticos e antropológicos sobre a população autóctone do Brasil, o envio de insetos, rochas e livros brasileiros para a biblioteca da Universidade de Göttingen, além de crânios indígenas e de animais conservados em álcool para o estudo do cérebro. […] Além dos aspectos científicos, constavam entre os objetivos delimitados elementos político-comerciais como a identificação de produtos passíveis de comercialização com o Império Austro-Húngaro.
SANTOS, Rita de Cássio Melo. Sobre crânios, idiomas e artefatos indígenas: o colecionismo e a História Natural na viagem de Johann Natterer ao Brasil (1817-1835). Soc. e Cult., Goiânia, v. 21, n. 1, p. 10-26, jan./jun. 2018.