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Táxi Blues

Rude Sunset

Por João Lanari Bo

Festival de Cannes 1990

Táxi Blues

Yesterday the sunset was very rude

My lips hurt, they hurt

Hello, who is this?

Is it Katya-ya-ya

Well did you like my dress yesterday

Whoa-whoa-whoa very rude, yeah

My lips … hurt

(Pyotr Mamonov)

Talvez o momento de maior intensidade concentrada na história recente da humanidade, do ponto de vista da transição política, tenha sido o fim da União Soviética – processo que se acelerou na década de 1980 e culminou em 1991, com a queda de Gorbachev e a ascensão de Iéltsin. O mundo socialista virou de cabeça para baixo: como um meteoro que caiu no oceano, ondas propagaram-se em círculos, e as consequências e desdobramentos persistem até hoje – a guerra na Ucrânia é sinal desse refluxo, entre outros. Captar o momento da virada de chave é tarefa dos artistas antenados. “Táxi Blues”, dirigido em 1989 por Pavel Lungin e lançado em 1990, foi uma dessas sintonias finas, um filme que pela desestruturação dramatúrgica que operou, vis-à-vis o modo de produção dominante no cinema soviético, liberou um pacote inédito de energia, um conjunto de corpúsculos transformadores que tomou de assalto o sistema nervoso da linguagem cinematográfica na URSS que se extinguia. A tentação de utilizar metáforas da microfísica para descrever o choque elétrico dessa irrupção é incontornável – e a conexão aparece clara e insofismável na banda de rock Zvuki Mu, algo como Som de Mu, que azucrinou a cena musical na década vertiginosa, sobretudo pela performance corporal e vocal do líder Pyotr Mamonov. Num dos castings mais certeiros que se tem notícia, Pavel Lungin selecionou Mamonov para encarnar um dos protagonistas, inspirado sem dúvida pela capacidade disruptiva do roqueiro, pura vitalidade diante da atmosfera de autoritarismo, pasmaceira e cinismo que prevalecia no campo social soviético. Em uma entrevista à época do lançamento da fita, Mamonov também se vale da microfísica e sugere ao público fiel dar uma olhada nos dedos indicadores, usando uma lupa: “Há tanta coisa lá: nervos … tantas nuances… a vida é uma coisa grandiosa”.

Intolerante e anárquico a um só tempo, “Táxi Blues” é uma verdadeira sátira, ou seja, uma construção poética, livre e repleta de ironia que se opõe aos costumes, ideias ou instituições de uma determinada época. Estamos em Moscou, sob a perestroika – as reformas econômicas de Gorbachev – atravessada por um taxista russo antissemita, Shlykov (Piotr Zaitchenko), e confrontada por um saxofonista judeu heavy drinker – claro, de vodca, Liocha (Mamonov). O taxista vende vodca para o saxofonista e sua trupe de bêbados: o não-pagamento implica na servidão involuntária do devedor, e Liocha acaba baixando como servo no apartamento apertado e miserável do bruto Shlykov. Movida por um mix de dependências sadomasoquistas, uma improvável amizade cresce entre os dois, malgrado a inveja e o racismo de um e a indiferença e a loucura de outro. O taxista sente-se rejeitado e vingativo: o saxofonista, impotente e brilhante. A direção de Lungin impulsiona os acontecimentos com uma notável energia – este é o seu primeiro longa, depois de vários roteiros, e ele não disfarça a sofreguidão para colocar as mãos na câmera, fazê-la voar pela cidade como se fosse um fogo-fátuo que erra freneticamente pelos ambientes, dia e noite. Acompanhar essa turbulência não é trivial – os personagens são exaustivos – mas exala de tudo isso raiva e paixão, ingredientes de um cinema vital. Os roteiros anteriores foram por encomenda, revela o diretor: neste, escrevi sobre mim mesmo, sobre meus sentimentoscom a perestroika no país, começaram as mudanças na minha própria vida… como diretor, eu, um tanto inesperadamente para mim, fiz um filme. E o país borbulhava: nos intervalos das filmagens, a equipe se reunia para acompanhar os acalorados debates na TV. O ar estava energizado, as pessoas conversavam e discutiam o tempo todo – a sensação de desgoverno era abissal, vertiginosa. Como dizia Nietzsche, quando você olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você.

Pavel Lungin editou “Táxi Blues” em Paris, uma ilha de calmaria em comparação com o roldão que grassava no império comunista, e ganhou o prêmio de direção em Cannes. A produção cinematográfica russo-soviética, evidente, foi afetada de alto a baixo pela transição abrupta, como de resto todos os setores possíveis e imaginários. A enorme estrutura estatal de produção, distribuição e exibição colapsou, aventureiros surgiram gananciosos e fazer cinema, por incrível que pareça, virou lavagem de dinheiro. Mas essa é outra história…

4 Nota do Crítico 5 1

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