Tarsilinha
Tarsila e o vale do Sem Fim
Por Vitor Velloso
“Tarsilinha” de Celia Catunda e Kiko Mistrorigo é uma animação baseada na obra da Tarsila de Amaral, contendo diversas referências aos famosos quadros da pintora paulista. Essa proposta de transferir a experiência das pinturas para um longa-metragem infantil, constrói uma linha interessante de diálogos entre possibilidades de representação da cultura brasileira, apesar de não situar o espectador na localidade da narrativa. Isso acaba manifestando a antiga problemática da fragmentação da cultura através das regionalidades, ainda que o critério seja a unificação através da trama.
Essa particularidade de “Tarsilinha” promove uma sequência de cenas divertidas, não apenas pelos diálogos, como pela mudança no ritmo da montagem e de algumas músicas cantaroladas pelos personagens. Talvez o momento mais explícito dessa relação multifacetada dos universos que são atravessados pela protagonista, seja o macaco sambista, que concretiza essa diferenciação de cada uma das passagens. Dessa forma, conforme o longa parte da ideia de um “filme de estrada” (road movieI), as coisas vão se desenvolvendo de maneira passageira, com estímulos diferentes para cada personagem que aparece, desde o sapo cururu até o Saci Pererê. Porém, essa dinâmica demonstra uma certa fragilidade quando o tema da “perda de memória”, representado por uma profunda apatia diante dos estímulos, introduzido nos primeiros minutos de projeção, acaba se transformando em algo tão literal quanto didático. Assim, a proposta estética e da estrutura narrativa que é capaz de dialogar com diversos públicos, do adulto à criança, perde força nesse reforço de uma unilateralidade das temáticas trabalhadas.
Por mais que haja um espaço notório para ambiguidades e múltiplas interpretações de certos fenômenos que atingem Tarsilinha, a forma como as questões são desenvolvidas não deixa grandes margens para uma concepção que possa ser compreendida longe de uma certa objetividade dos distintos estímulos promovidos pelo filme. Está claro que o público alvo foi previamente definido e o projeto funciona bem para o mesmo, porém, as inspirações nas pinturas e todo o cenário, apesar de combinar com sua proposta lúdica, não podem ser vistas da mesma forma. Não por acaso, uma provável categorização feita para “Tarsilinha” será de como o longa é “para todas as idades”, o que reforça algumas falhas na construção dessa aventura tão divertida e despretensiosa, que perde impulso depois do impacto positivo inicial.
De todo modo, o espírito inocente e livre da produção é capaz de conquistar o espectador com as pronúncias do sapo e com a amizade construída ao longo dessa procura pelas memórias da mãe. O que não deixa de ser uma interessante alegoria da retomada de uma cultura brasileira que é celebrada quase sempre sem narrativas, apenas no esvaziamento programático das apologias paulistas.
Aproveitando-se das inúmeras comemorações ao centenário da Semana de Arte Moderna, onde Tarsila do Amaral é frequentemente lembrada e incluída, o filme consegue um respiro na distribuição e pode alcançar um bom resultado de bilheteria, que seria uma marca importante para a animação nacional, especialmente no atual contexto. “Tarsilinha” tem uma série de elementos que ajudam a transformar a experiência em algo verdadeiramente agradável e sincero. A música de Zeca Baleiro e Ná Ozzetti é a síntese dessa história, que ao encerrar a projeção, faz com que o espectador permaneça sentado enquanto repassa os momentos que conviveu com as pinturas e referências da cultura brasileira nos nomes dos personagens, famílias citadas e representações dos quadros.
Por mais que a menção já esteja no título, o projeto ainda consegue se consolidar como uma animação que não depende da percepção dessas questões para ser apreciada, um exemplo disso é a retomada didática que está presente nos créditos finais.
Driblando algumas limitações técnicas, “Tarsilinha” tem um resultado final surpreendente, leve e que não precisa recorrer aos clichês categóricas da indústria, podendo se apegar no que o cotidiano pode nos dar de encontros e experiências imprevisíveis, ainda que marcantes.