Mostra Sessões Especiais Mais uma Edicao

Suçuarana

A Fera na Selva: Tudo flui e nada permanece

Por Fabricio Duque

Assistido durante o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro 2024

Suçuarana

Quando o cinema de Clarissa Campolina (de “Girimunho“) se junta ao cinema de Sérgio Borges (de “O Céu Sobre os Ombros“), o resultado é uma evocação formal de uma suspensão negativa do tempo, potencializando a imersão dos micros instantes do exato momento em que se existe. Em “Suçuarana”, filme da dupla, em competição oficial aqui na quinquagésima sétima edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, essa confluência cria uma metafísica sensorial e flutuante, fazendo com que nós sejamos convidados a participar de todas as camadas do ser enquanto um objeto social, numa narrativa puída, rasgada e sem perspectivas variantes de suas personagens. Cada um ali na história vive sua própria sobrevivência solitária, protegendo-se de seus sonhos ilusórios. Apegar-se a algo e/ou a alguém é uma consequência de covardia, de baixar a guarda e o “pior”: de voltar a acreditar na vida.

“Suçuarana” corrobora essa forma criativa de seus realizadores, nos conduzindo a sentir a jornada vazia de sua protagonista e de não saber o verdadeiro querer. De ser guiada à deriva em um mundo hostil, que já desistiu dos outros há bastante tempo. No cinema de Clarissa e Sérgio, há outro elemento definidor: a de iniciar o filme na ação (sem a didática explicativa da causa passada), em câmera muito próxima à personagem e movimentos rápidos que nós chegamos a ter vertigem. Preciso fazer um parênteses aqui neste texto, porque a maestria de alguns há filmes reside na total experiência do sentir e “Suçuarana” é um deles. Como explicar logicamente o invisível? Sim, a fotografia de Ivo Lopes consegue chegar lá e traduzir essa ambiência etérea de personificar o despercebido (o que já está tão automatizado que não paramos para pensar). Esse abstrato imaterial quer tornar o não diegético em real. 

Assim, “Suçuarana” não se preocupa em tentar ser mais didático e/ou palatável a seu público. Prefere então a liberdade de ressoar uma identificação sóbria e auto-psicanalista à solidão optativa de quem as vive, especialmente seu público. Mas essa narrativa não é completamente de se deixar a câmera filmando os momentos. Há um cotidiano editado, escolhido e pautado essencialmente nos silêncios, que são a melhor maneira de encontrar respostas e direcionamentos internos. A personagem principal escolheu ser itinerante (e não “serve” para “essa coisa” de afeto). Seu “pertencimento é a estrada”, como bem disse um dos diretores, Sérgio Borges, na coletiva de imprensa no dia posterior à exibição do longa-metragem. Para alguns, uma sina, para ela, o próprio sentido de vida. Podendo inclusive ser visto como um ato revolucionário, por quebrar os paradigmas já tradicionais conservados de nossa sociedade, como por exemplo, o trabalho precarizado. 

“Suçuarana” é um filme todo atravessado por instantes e ruídos ao redor. E a mestria dessa condução narrativa está na interpretação contida e de exposição recôndita, pela sutileza que alcança a encenação-esfera, vivenciada pela atriz Sinara Teles. Seu “amigo” de cena é um cachorro (chamado Encrenca), que por sua vez responde melhor e bem mais competente que muito ator por aí. Se o Festival de Brasília instaurasse um prêmio ao Melhor Dog, sem sombras de dúvidas esse ganharia de lavada. Aqui, cada um deles cria suas defensivas contra o sofrer antecipado. Abandonar primeiro é mais “terapêutico” que ser abandonado. Parece óbvio. Cada um desses seres age (e falam) pelo instinto-verdade (as relações são brutas, duras, diretas e “sem papas na língua”), mas ainda assim são cúmplices no entendimento humanizado da dor e empáticos no drama (“sabem “o que é não ter ninguém e não ter nada para comer”). É um filme-poesia, em planos-composição (a cena da chuva é um dos exemplos mais concretos para embasar toda essa metafísica) que parece ser um portal, um mundo paralelo de análise antropológica, de estudo-cobaia em tempo real. 

“Suçuarana” começa oficialmente, com seu crédito em tela, após quinze minutos. Podemos ler isso como se fosse um preâmbulo. E/ou como uma introdução do início de uma busca, de algo-ideia que se procura, mas no fundo, pelo tédio do próprio tempo, torna-se apenas quereres casuais para preencher vazios. Cada um ali é um zumbi andarilho, que encontram pessoas-possibilidades pelo caminho, outros zumbis, que se resignam com as desgraças-carmas coletadas, mas que resolvem não cair ainda e seguir andando, sem até saberem o porquê. Contudo, sempre há uma “pulga no orelha”. A foto e a música (cantada magistralmente por Inezita Barroso) têm o nome de “Sussuarana”, mas o título daqui é sobre o nome de uma onça. Isso muito motivado pelas referências e bases do livro “A Fera na Selva”, do escritor britânico Henry James, sobre solidão, destino, amor e morte. Confesso que não percebi mesmo essa relação metafórica do animal com o corpo-espaço da personagem. Mas sim esse é um detalhe que não atrapalha em nada o seu resultado qualitativo. 

E sim, precisamos falar mais do Encrenca, o cachorro sensitivo que dá alma ao filme. Que pode ser visto como uma aparição, uma “entidade”, um guia ou a própria mãe buscada pela protagonista. “Suçuarana” é sobre não adestrar (e domar) a impermanência e não deixar a resignação existencial se firmar no terreno da zona de conforto. Aqui, é tudo sobre a viagem. Sobre o ir “em busca de algo”. Sobre o aceitar ser um rejeitado e não lutar contra isso. O ficar então é transitório, momentâneo e para se trocar conversas, entre danças lúdicas e risos. Mas não é o território dela. “Suçuarana” é o devir. No ano 500 a.C, Tudo flui e nada permanece, tudo dá forma e nada permanece fixo; Heráclito já mandava a pedra: “Tudo flui e nada permanece, tudo dá forma e nada permanece fixo; Você não pode pular duas vezes no mesmo rio, pois outras águas e ainda outras, vão fluir”. 

4 Nota do Crítico 5 1

Conteúdo Adicional

Pix Vertentes do Cinema

Deixe uma resposta