Stalker
Sobre stalkers, o tempo e a vida
Por Roberta Mathias
Festival de Cannes 1980
Antes de iniciar, admito e ressalto que esse é um trecho de minha dissertação de Mestrado intitulada “Cristais de Tempo: O Cinema de Andrei Tarkovski”, concluída em 2012.Como me foi atribuída a difícil tarefa de escolher um filme dentre todos os possíveis (e muitos) favoritos para fazer uma crítica de apresentação, achei que não seria justo comigo escolher outro cineasta senão o que me apresentou à um cinema diferente. Foi ao bater meus olhos em uma sequência de Nostalgia que o cinema começou a se revelar. A escolha de “Stalker” passa pela minha relação com meu pai – falecido em 1994 e, que me ensinou a apreciar as artes, mas também com meus mestres. Primeiro, Zeka Araújo – vivíssimo e em plena produção fotográfica sempre, que desenvolveu em meus olhos, ainda adolescentes, um olhar estendido sobre as pessoas e as coisas. Depois, Claudia Castro – falecida em 2010 – que me orientou na graduação, na pós-graduação e reabriu meus olhos para uma relação amorosa entre Filosofia e Cinema e uma relação mística com Walter Benjamin, Alejandro Jodorowsky e a própria vida. A eles dedicarei sempre – diretamente ou apenas em meus pensamentos – todo e qualquer texto que venha a escrever sobre cinema.
A imagem cristalina de Tarkovski
“Stalker” é o último filme de Tarkovski na Rússia, uma adaptação livre (como sempre são as adaptações do diretor) do livro de ficção científica Piquenique na Estrada. Um cientista, um escritor e um stalker (espécie de guia). O que conecta essas três personagens? A Zona. Somos levados a um lugar insólito, provocado pela queda de meteoros ou pela chegada de aliens, que provoca medo e curiosidade. O lugar é cercado por tantas indagações que passa a ser alvo de monitoramento militar e desejo de todos. A esperança é encontrar uma sala que realiza seu pedido. Porém, para isso, é necessário passar pelos perigos da Zona. Esse é o enredo de “Stalker”. O filme começa com um tom sépia que só será abandonado quando adentrarmos a Zona. Assim que nos é apresentada a história da Zona, a primeira cena é a de um bar. Lentamente, Tarkovski entra na casa do Stalker, na qual ele próprio não se sente confortável, as constantes brigas com a esposa, sua forte conexão com a Zona e a doença da filha ,que também carrega dor e beleza (a sequência final do filme é uma das mais belas) faz com que ele veja a Zona como seu lar.
A maneira como a câmera adentra a casa faz com que o próprio espectador se sinta um invasor, um corpo estranho naquele ambiente. E, para aumentar essa sensação, Tarkovski trabalha com uma de suas especialidades: o som. Desde o início do filme ouvimos som de goteiras e outras interferências que não são bem definidas. Talvez devamos dar especial atenção ao som do trem que delimita tensão entre os espaços (bar, Zona, casa), à notável presença da água (seja através das goteiras, seja com barulho de Cachoeira) e à utilização de músicas. “A imagem-cristal não é menos sonora que ótica.”, diz Deleuze[1]. Tarkovski não escolhe o Bolero de Ravel e a Nona de Beethoven por acaso. O que interessa é o caráter de circularidade e ambas as músicas, como o barulho de um trem ou o pingar contínuo de uma goteira. Ele nos envolve na realidade do Stalker.
Já na apresentação dos outros personagens podemos perceber o conflito. Todos possuem convicções abaladas e convivem com a incerteza de sua importância para humanidade. O escritor/jornalista questiona sua arte (“Se daqui a cem anos ninguém ler o que escrevi, para que serve tudo isso?”[2] ), o cientista é o homem da razão, mas tem tanto medo de que a Zona possua de fato poderes que prefere destruí-la e o stalker , por momentos, tem dúvidas se suas viagens farão algum efeito em corpos que considera sem alma. Talvez desse último tenhamos que falar da inquietação que o acompanha, sabe que não pode viver na Zona, mas só consegue vislumbrar uma existência naquele lugar. Sem que um nome seja atribuído a cada personagem até o final do filme, são os diferentes posicionamentos em relação ao mundo que são questionados. Não é exatamente um embate entre Arte, Ciência e Religião (no caso de Tarkovski seria melhor falar Fé) que observamos durante o percurso, mas uma crítica ao que o diretor chama de crise espiritual. Um questionamento sobre a vida e nosso futuro. Assim que chega, Stalker se atira na grama e parece extasiado. Finalmente a percepção de um tempo diferente. “Aqui tudo muda o tempo todo. É preciso ter respeito”, diz. Essa é apenas uma das cenas nas quais a natureza pode ser observada em Stalker, a preocupação com a textura e cor da grama é nítida.
É muito importante pontuar que esse respeito não se dá pelo distanciamento, mas pela proximidade. Respeito aqui é semelhante à aceitação mútua, por isso o Stalker parece se encaixar tão perfeitamente à Zona. Já o Escritor busca a inspiração perdida e o Cientista diz participar da viagem por interesses científicos, mas esconde em sua mochila um arsenal para destruir o quarto. O primeiro não acredita nas coisas que se passam e o segundo tem verdadeiro pavor. De uma maneira, ou de outra, ambos relutam em aceitar o ritmo próprio da Zona. A figura marginal, que é o stalker, sentencia: “têm o órgão da fé atrofiado”. A viagem para Escritor e Cientista funciona como um rito de passagem, mas não como um tradicional. Não há, depois de tantos percalços, o momento em que entram no quarto para realizar o desejo. O que há é a tensão. O medo de ao entrar ter seu mais profundo desejo realizado. E qual seria esse desejo? Os três permanecem em frente ao quarto sentados e uma forte chuva cai. Há uma mudança de iluminação e eles ali permanecem, no limiar. A presença de sons de goteiras, reflexos e os pingos da chuva é o que mais chama a atenção. A água que nos acompanhou durante todo o filme aparece nesse plano temporalizando a imagem. E, novamente, escutamos o som do trem.[3] Tarkovski constantemente apresenta ritos de passagens conferidos a seus personagens . A travessia com a vela na mão em Nostalgia, a relação com a empregada em O Sacrifício, as armadilhas da Zona em Stalker.
Essa intensa utilização da água em “Stalker” faz com que Ana Powell desenvolva o conceito de cristal líquido, apresentado por Deleuze no capítulo Cristais de tempo[4]. Segundo a autora a imagem-tempo de “Stalker” é produzida pelo impacto da luz na água. Como observa, os eventos em “Stalker” têm uma carga temporal que ultrapassam a noção de espaço e do próprio tempo utilizadas mais comumente em uma produção audiovisual. Deleuze, no entanto, faz uma observação pontual sobre os filmes Stalkere O Espelho. Assim como acredita que em O Espelho o cristal gira em torno de si próprio (nas dualidades mãe, esposa/ pai, filho e na relação de Alexéi com a sua mãe e de seu filho com sua esposa) permanecendo na opacidade, em Stalker também não há uma reconciliação entre meio e germe para o autor. Seriam, então, imagens-cristal fechadas.
Nas palavras de Deleuze: “Stalker devolve o meio à opacidade de uma zona indeterminada, e o germe, à morbidez do que aborta, uma porta fechada”[5]. Para entendermos essa afirmação, precisamos voltar à teoria deleuziana. Desenvolver os dois aspectos da imagem-cristal. O germe cristalino é o limite interior, mas a imagem-cristal possui também um “universo cristalizável”, circuitos profundos que correspondem à possibilidade de uma atualização expandida. Para além da atualização entre “atual e seu virtual”, há essa atualização espiralizada do cristal.
Contudo, Ana Powell propõe que determinadas sequências dos filmes de Tarkovski provocam essa expansão. Ela se detém em uma sequência específica do filme Stalker: o sonho do Stalker assim que chega à Zona. Para Powell, a água aí escapa da opacidade e chega à translucidez. Um insight que é, ao mesmo tempo, sensorial e metafísico. Não sabemos mais o que é reflexo e o que são, de fato, objetos. Perdemos também a noção dos limites da água na imagem. Retomo uma sequência que já foi citada: a da forte chuva, assim que os três não adentram o quarto. Logo após a chuva, o Cientista joga a bomba desativada na água. O forte barulho da chuva se transfigura em barulho de água corrente e, depois, no barulho do trem acompanhado pelo Bolero de Ravel. O óleo que suja a água não a tinge de preto por completo, nem impede que enxerguemos a bomba. O fluxo contínuo da água permite a coexistência entre opacidade e translucidez. O que proponho é uma visão dos filmes de Tarkovski como um cristal cambaleante que, logo volta ao seu eixo e se estabiliza sobre as questões da União Soviética. Mas nos momentos em que consegue escapar desse eixo, apresenta reflexos múltiplos.
A zona é vazia, preenchida apenas pelos destroços de carros, armas antigas, tanques inativos, etc… É possível compreender esse cenário pelo fato do filme ser gravado em uma área afetada por radioatividade na Estônia. Todos os objetos relacionados à guerra e destruição estão presentes, mas o que temos não é um clima pesado. Em muitos planos somente vastos campos verdes são avistados. A inquietação existe, sim, mas ela aparece como dúvida, pois nós, assim como os personagens, não sabemos se o quarto milagroso sequer existe. O som contínuo do trem também nos remete ao tempo e ao desconhecido e demarca as passagens (chegada e saída da zona), assim como os pingos de água. Mas, “O escritor” avisa que nesse lugar o tempo é diferente. “Antes o futuro era apenas uma continuação do presente. Agora, porém, o futuro e o presente fundiram-se.” Nesse lugar não se trata de observar para depois instituir regras. O empirismo não vigora na Zona. Ela funciona através das próprias regras, mas é livre. Talvez a única regra seja a de estar aberto a todas as possibilidades da Zona e respeitá-la. Para recobrar a capacidade de se permitir vivenciar esse novo tempo, é preciso também estar atento. Em duas passagens bíblicas Tarkovski retoma uma ideia fundamental ao Cristianismo.
Não pretendo entrar em questões religiosas e teológicas, mas a ideia de que não é preciso enxergar para acreditar, perpassa todo o filme. A primeira passagem é a história de São Pedro, contada pelo “Escritor”. Este ao ver Jesus caminhar sobre as águas, achou possível que ele mesmo pudesse caminhar, e conseguiu. Mas como a fé de Pedro estava somente baseada no fato de ter visto Jesus caminhar anteriormente, ele logo caiu. A segunda passagem é recitada poro Stalker e está em Lucas 24: 13-32. Duas pessoas encontram Jesus ressuscitado, mas estão tão preocupadas com os acontecimentos de sua morte, que não o reconhecem. Novamente, retomo a ideia de que a travessia em si é mais importante que o próprio quarto. Há uma questão mística presente em todos os filmes de Tarkovski desde a retomada da crença em “Andrei Rublev” até o abandono total dos bens e da própria sanidade que ocorre em “O Sacrifício”.
Esse misticismo está presente também em “Stalker”, mas entendo que ele não ultrapassa em densidade a fragmentação temporal. Não é o misticismo e, muito menos a religião, que confere carga poética ao cinema de Tarkovski, mas um questionamento de si e das coisas que desemboca em um questionamento temporal. O próprio Escritor começa a travessia sem saber o que deseja. Ele diz desejar ser um gênio, mas admite que, caso consiga esse feito, o próprio processo da escrita perderia sentido. Ele, que acredita em um “mundo sem duendes e, certamente, sem Deus”, entende que seu trabalho o faz buscar a verdade sem nunca alcançá-la. Pois, se na sua visão “o professor” busca a verdade e esta sempre foge do mesmo, na qualidade de escritor, ele diz encontrar a verdade, mas no momento em que a encontra, ela se transforma. Não é possível permanecer na Zona, assim como não é possível tomar posse da verdade. “São coisas efêmeras, basta dar-lhes um nome, perdem sentido. ” Se, por um lado, a chegada ao quarto nunca é concretizada, durante o caminho os três personagens de Stalker se colocam questões sobre a existência e a fé que talvez só pudessem surgir em um ambiente onde a temporalidade é outra.
É bom lembrar que o livro “Piquenique à beira da estrada”[6]. é, de fato, sobre aliens que visitam nosso planeta e depois abandonam a área ,deixando-a com características inexplicáveis aos olhos humanos. De uma maneira, ou de outra, o novo aparece como possível restaurador e, para Tarkovski, vivenciar a arte pode ser um alerta para o homem moderno, se o artista tiver consciência de sua responsabilidade para com a humanidade. O Stalker é o exemplo de entrega. A posição de guia da Zona o torna ilegal, dessa forma, ele é tido como figura exótica até mesmo pela própria esposa que permanece como sua companheira enfrentando todas as dificuldades impostas pela condição, mas não é possível dizer que o compreenda. No entanto, ela também se dedica com afinco à sua grande paixão mesmo esperando desgraças anunciadas. Dentre todas as “desgraças”, porém, para ela, nenhuma parece mais forte, que o efeito da Zona sob sua filha, é o que ela mesma admite ao espectador. Em uma cena marcante, a esposa do Stalker dissolve a distância entre espectador e personagem e nos revela as dificuldades de seu casamento. São poucas as informações que temos sobre os problemas da menina, além do que é comentado pelo Cientista: ela teria sofrido uma mutação decorrente do contato contínuo do pai com o lugar. Nas últimas cenas do filme vemos que, de fato, a menina possui limitações motoras, mas esse não parece ser o único efeito deixado pelas excursões do Stalker.
Em um lindo plano final, ela move os copos da mesa apenas com o olhar enquanto escutamos um poema de Fyodor Tyutchev[7].A habilidade da menina nos remete a outro poema recitado durante o filme , este do pai de Tarkovski, Arseni. “Quando o homem nasce, é fraco e flexível; quando morre é impassível e duro. Quando uma árvore nasce, é tenra e flexível; quando se torna seca e dura, ela morre. A dureza e a força são atributos da morte; a flexibilidade e a fraqueza são a frescura do ser. Por isso, quem endurece, nunca vencerá…”
[1] DELEUZE, Gilles 2005página 115
[2] Frase dita pelo Escritor durante o filme Stalker
[3] Tarkovski constantemente apresenta ritos de passagens conferidos a seus personagens . A travessia com a vela na mão em Nostalgia, a relação com a empregada em O Sacrifício, as armadilhas da Zona em Stalker.
[4] DELEUZE, Gilles 2005 página 95
[5] DELEUZE, 2005 Página 95
[6] Livro dos irmãos Strugatsky no qual Tarkovski se inspirou para escrever o roteiro de Stalker
[7] Poeta russo( 1803-1873). Ainda que pareça fugir ao tema, creio ser relevante citar a versão musicada desse poema por Bjork (cantora sueca contemporânea)- Dull Flame of desire, de 2007. A primeira parte do clipe mostra pequenos pontos luminosos, estrelas ou cristais, que se alternam formando o rosto da cantora. Construído e desconstruído constantemente.