Sou um Assassino
Eu sou um assassino: e você?
Por João Lanari Bo
“Sou um assassino”: este é o título provocativo da uma longa série da Netflix, lançada em 2018 e até agora com 32 episódios em 4 temporadas. A primeira surpresa nesse projeto documental é a sobriedade: não espere, caro leitor, sequências estilo sangria desatada, ação acelerada e piruetas mortais descrevendo mortes premeditadas ou acidentais, tais como assistimos dezenas de vezes por dia na ficção enlatada da TV. Não espere, tampouco, romantização ou erotização forçada de personagens, vítimas e/ou algozes, como sói acontecer nas tramas exibidas aos quilos na telinha. E até mesmo não espere aquela psicologização canhestra de agentes da lei e/ou foras da lei, como se o mundo fosse prioritariamente habitado por pessoas com esses, digamos, perfis. Quantos assassinos verdadeiros conhecemos e estão ao nosso redor, próximos? E quantos policiais, corruptos ou não corruptos? Provavelmente poucos, talvez nenhum. Cabe a pergunta: à presença hipertrofiada dessas tipologias no imaginário televisivo, não corresponderia uma patologia social, uma (des)compensação sado-punitiva que contamina nosso combalido tecido social?
A série em tela é diferente – e logrou obter um resultado objetivo na recapitulação de situações-limite de violência, assassinatos e respectivos contextos. Para isso, empregou uma linguagem minimalista e eficiente: cada episódio de 48 minutos em média foca em um (ou uma) condenado(a) por assassinato, que é entrevistado(a) em plano fixo, frontal e a meia distância. Essas imagens são pontuadas por pillow shots – planos de transição de paisagens, recantos urbanos e objetos casuais, da mesma forma que o cineasta japonês Yasujiru Ozu fazia – e testemunhos de parentes, amigos, detetives, xerifes, advogados, juízes e procuradores. Algumas gravações são apresentadas a depoentes, e ao final o preso(a) confronta opiniões muitas vezes divergentes, fechando o episódio.
O chamado true crime, subgênero que invadiu o audiovisual, é algo que se propõe a tornar crível o que ocorre diante de nossos olhos mediante um surplus de realidade que simula…a própria realidade. “Sou um assassino” não tem nada disso, propõe-se ao contrário como o grau zero da ambição de captar a realidade. Dispensa de saída firulas desnecessárias – praticamente não há movimentos de câmera e imagens rebuscadas, só master shots, planos estáticos e poucos travellings, combinados em edição lenta. O que importa, afinal, são narrativas e narradores: histórias duras, intensas, mas contadas com o distanciamento possível, constroem enredos de forte impacto emocional. O núcleo central é sempre um trauma profundo, a morte violenta de alguém inserido naquele circuito. O discurso direto do assassino(a) é suficientemente desdramatizado para induzir a uma proximidade com o telespectador: seguem-se falas do entorno afetivo, parentes e amigos de assassinos e vítimas, e do entorno jurídico-policial, circunstanciando as situações. Cada segmento traz uma especificidade irredutível – mesmo com a repetição do modus operandi, um arco de dramas e sofrimentos de alta voltagem é revelado. Embora aos presos seja permitido a exposição de dúvidas e críticas ao sistema judicial, isso não altera suas sentenças: a maioria é pena perpétua. As evidências apresentadas visam provocar a reflexão dos espectadores.
Como informam cartelas exibidas ao longo da série, a cada ano nos Estados Unidos mais de 8.000 pessoas são condenadas por assassinato, apesar de menos da metade confessar o crime: desse total, cerca de 10% são mulheres. Foram quase 7.800 mil sentenciados à morte desde 1976, quando a pena capital foi reintroduzida nos EUA, dos quais 1.500 executados. Das 135.000 encarcerados por assassinato nos Estados Unidos, mais de 25% foram diagnosticados com uma doença mental grave. Estatísticas como essas, em conjunto com os vários relatos apresentados, fornecem um solo sociológico que baliza os dramas particulares. Questões conexas, como álcool e drogas, comércio de armas, são, em geral, tangenciadas. Ênfase especial é dada por muitos dos entrevistados a lembranças de abuso intrafamiliar e ao histórico de omissão e dispersão da figura paterna.
“Sou um assassino” é, também, um binge-watch investigativo de temas polêmicos. Seu interesse alcança a discussão sobre a pena de morte, em vigor em 29 estados. Por exemplo: pessoas com deficiência intelectual ou que tenham sofrido violência sexual continuada quando menores – devem ou não ser sujeitos a pena de morte? Alguns praticam crimes e não têm consciência da gravidade de suas ações, no momento em que as realizam. Faz sentido executá-los? Casos difíceis podem gerar entendimentos distintos: nem todos os juízes e membros de júri popular têm a mesma interpretação do que constitui um crime grave. Argumentos contra ou a favor da pena de morte sugerem que o tópico é ambíguo e incerto, mesmo numa sociedade polarizada e violenta como os Estados Unidos – um tópico que realça, em última análise, a cisão político-social que assusta o país (e o mundo).