Só Dez por Cento é Mentira
A poesia da simplicidade
Por Fabricio Duque
A poesia de Manoel de Barros tem o lirismo do realismo da infância. A frases utilizam o seu universo. “Só dez por cento é mentira, os outros noventa por cento são invenção”. A mentira distorce a realidade, a invenção complementa. Chega a ser quase impossível transcrever alguma passagem literária do filme, porque há inúmeras excelentes referências da obra deste poeta que nunca fornece uma entrevista, mas que abriu uma exceção para este filme sobre ele. Uma das características do ambiente apresentado é a simplicidade do tudo, sem o complexo. A linguagem usual e típica é escolhida por retratar o melhor da sinceridade da alma humana. O poeta diz que só sabe escrever sobre a infância e sobre as primeiras percepções que um ser humano absorve de sua existência inicial, guardadas em uma caixa.
Com depoimentos da família, de outros artistas plásticos, da escritora Adriana Falcão e da Elisa Lucinda, a narrativa acontece quadro-a-quadro, desenhando a vida do artista principal, que acha Charlie Chaplin um gênio, e do que está a sua volta. Ele se intitula um vagabundo, um inútil por só saber escrever. De fala mansa e segura, com um sarcasmo ingênuo e natural, vai ensinando e desfilando a sua poesia moderna, atual e atemporal, que desafia o ritmo e a métrica, que envolve o sentimental e o não clichê, recriando o gênero. “Só Dez Por Cento é Mentira”, não tão grande assim, é uma obra de arte de momentos, instantes e da própria verborragia poética, lúdica e direta. O poeta fornece às coisas uma importância maior do que elas são. Um cadeira não é só uma cadeira. É humanizada e transforma-se em personagem principal do dia-a-dia.
A câmera entra no jogo do real e imaginário, com músicas que refletem a alma sem sensacionalismos exagerados, pobres e pequenos. Experimenta-se o constraste, a sombra, o colorido, a pipa de papel. Os referenciais escritos da obra dele são enfatizados na tela. E são muitos. A vontade que se tem é que “Só Dez Por Cento é Mentira” não acabe, porque não cansa, porque cria a vontade do quero mais. A motivação do dever da leitura dos livros obriga a nossa vontade e saímos do cinema com a sensação e a emoção de termos tido uma experiência extremamente introspectiva e inteligente. Acrescenta vida ao nosso mundo. A inspiração do seguir em frente torna-se prazerosa.
O poeta inventa inutensílios como o “esticador de horizontes” e “abridor de amanhecer”. Cada um faz seu próprio Pantanal, diz com a sua biografia inventada e nos versos seus fantásticos, com representações gráficas alusivas ao universo extraordinário dele. Manoel de Barros tem 93 anos, cerca de 20 livros publicados e vive atualmente em Campo Grande. Consagrado por diversos prêmios literários, é atualmente o escritor brasileiro que mais vende no gênero poesia. Ele nasceu em Corumbá, no Mato Grosso do Sul, em 1916, onde passou sua infância. Aos 13 anos foi estudar num internato re-ligioso no Rio de Janeiro. Em 1949 saiu do Rio e voltou ao Pantanal para tomar conta de uma fazenda que herdou do pai. Viajou por vários lugares do mundo e chegou inclusive a viver em Nova York, Paris, Itália e Portugal. Afastado dos círculos literários só começou a ter êxito ao publicar ar-ranjos para assobio, em 1980, com 66 anos.
“Só Dez Por Cento é Mentira” ganhou os prêmios de melhor documentário longa-metragem do II Festival Paulínia de Cinema 2009 e os prêmios de melhor direção de longa-metragem documentário e melhor filme documentário longa-metragem do V Fest Cine Goiânia 2009. A poesia contagia pela simplicidade e realiza o processo de libertar a nossa existência das falsas verdades.
Pedro Cezar, nasceu em Pernambuco, em 1968, é jornalista, escritor e tem dois livros de poesia publicados com destaque para “Concepção de frases em ninhos de água”. É autor do vídeo Trocando as Bordas, que mistura surfe e poesia, e dos vídeos Cambito, Cambito 2 e Cambito 3, entre outros.