Sinfonia do Fim do Mundo
Anti-concert movie
Por Pedro Mesquita
Durante o Festival Ecrã 2022
A câmera localiza-se num salão, enquadrando uma série de portões (fechados) que lhe servem de entrada. Ouvimos, por uns instantes, sons vindos da rua, que paulatinamente cessam. O ambiente, agora, é silencioso. A câmera começa a percorrê-lo, revelando aposentos espaçosos, cheios de quadros, móveis ornamentados… todos esses objetos são índices da presença do ser humano, afinal, foi necessário que alguém existisse para produzi-los.
Mas eles não existem mais, ao menos neste filme de Isabella Raposo e Thiago Brito. Aqui, o fim do mundo está decretado, então nos resta observar as obras deixadas pelos homens com um ar de melancolia. A câmera as mira, sem deixar de seguir o seu caminho; o travelling continua até desembocar num teatro (vazio, é claro). A cortina do palco se levanta e vemos um homem; uma possível exceção ao suposto fim da raça humana.
Este homem (Jorge Caetano), enquadrado em close-up — e assim ele permanecerá durante toda a sessão — começa a cantar. As luzes do palco se acendem e um microfone aparece, ao que ele começa a usá-lo. Uma música se emenda na outra, e na outra, e na outra, e não demora para que percebamos que “Sinfonia do Fim do Mundo” tomará a estrutura de um concerto. O homem ganha até seus acompanhantes: eventualmente, ouvimos a presença de guitarra, baixo e bateria se juntando à sua voz (instrumentos esses cujos intérpretes nunca são revelados pela câmera, restando a nós a possibilidade de duvidar ou não de suas existências).
O filme tem sim a estrutura de um concerto musical, mas a sua forma vai na direção contrária: podemos até dizer que “Sinfonia do Fim do Mundo” é uma espécie de anti-concert movie. Se a tônica dos filmes-concerto está na maneira como o aparato cinematográfico consegue amplificar e embelezar a apresentação musical, então o filme de Isabella e Thiago só pode ser definido pela maneira como ele nega e contradiz esses objetivos. A câmera nunca abandona o rosto do frontman, focalizando-o sempre naquele opressivo close que não nos deixa ver mais nada; a montagem é praticamente inexistente, visto que só existe um plano e ele nunca é abreviado por meio de elipses em momento algum (nem mesmo no silêncio que se faz entre as músicas); por fim, o próprio talento musical da banda é no máximo decente.
Mas a questão do silêncio é a que mais chama a atenção aqui. Se a composição 4’33’’, do célebre compositor norte-americano John Cage, questionava o que resta de uma performance musical quando dela se retiram as próprias notas musicais, “Sinfonia do Fim do Mundo” questiona o que dela resta quando se retira o receptor, a platéia. Bom, neste cenário pós-apocalíptico em que se canta e se toca para ninguém, o que pode estar motivando o nosso protagonista anônimo a continuar cantando é a própria capacidade que essas músicas têm de restaurar tempos passados; de relembrar as histórias que as canções contam; de restituir as pessoas retratadas nessas histórias e as pessoas que as narram. E o repertório aqui é vasto — vamos de Lou Reed a Nancy Sinatra a Celso Blues Boy a Bill Withers a Screamin’ Jay Hawkins e por aí vai — de modo que as memórias contidas nas músicas e nas letras são praticamente infinitas.
A imagem do rosto do homem cantando nos serve, portanto, como um resquício de humanidade antes que o show termine e o contraplano daquele close — uma tomada do teatro vazio — finalmente nos devolva à realidade: o mundo acabou e não há mais pessoas. Acabado o concerto, a câmera toma o mesmo caminho que havia tomado para chegar no teatro, agora percorrendo-o no sentido oposto. Estamos, portanto, de volta ao salão do começo. Vamos além, dessa vez: estamos, pela primeira vez, num ambiente externo — a entrada do teatro. Vemos as ruas, completamente esvaziadas mas ainda iluminadas, e, numa vagarosa série de planos, essa iluminação vai progressivamente diminuindo até que se faça a escuridão total.
O apocalipse é um dado em “Sinfonia do Fim do Mundo”. Ele não é desenvolvido pelo filme a partir de relações de causalidade, não é dramatizado ou sequer explicado; ele permanece como um vazio que o espectador preenche da maneira como melhor lhe convir (provavelmente convocando eventos extra-fílmicos para fazê-lo). Esse fatalismo prejudica o filme, tornando a sua experiência absolutamente enfastiante, apesar dos lampejos de graça oferecidos pela música.