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Shanghai Blues

Hollywood made in China

Por João Lanari Bo

Festival de Cannes 1984

Shanghai Blues

Nesses tempos de transição abrupta e descalibrada, sob o comando (ou descomando) de Donald Trump, tudo pode mudar em questão de segundos. Do micromanagement das pequenas manias – como sua obsessão em renomear o Golfo do México, após longas contemplações infantis do globo terrestre – às ousadas e caóticas intervenções nas guerras atuais, Gaza e Ucrânia, o dedo do Presidente parece capaz de provocar terremotos. Mas é a China, o gigante adormecido que despertou no final do século passado para tomar a dianteira no mundo que se avizinha, o grande inimigo identificado pelos estrategistas norte-americanos e seu desabusado líder.

Afinal, o que tem tudo isso a ver com “Shanghai Blues”, produção do gênero musical realizada em Hong Kong lá pelo ano de 1984, dirigida e produzida pela infatigável Tsui Hark? Relançado pela plataforma MUBI com cópia restaurada em 4K, o filme é uma verdadeira pérola, no sentido cinéfilo do termo, mesclando com leveza (e agilidade) romance, comédia e ação farsesca. Em artigo sobre a fita publicado na revista australiana Senses of Cinema, lemos que:

Parte musical de bastidores, parte farsa, parte romance, Shanghai Bluesoferece uma mistura de gêneros que não é nada estranha para o público de Hong Kong, e a maneira mais fácil para os olhos ocidentais assimilarem é relembrando as vertiginosas misturas de gêneros da Hollywood Clássica, onde um filme precisava enfiar vários tipos de entretenimento em seu enredo para satisfazer um público diferente. É como voltar a uma era mais inocente antes que a pesquisa de mercado encontrasse um nicho para tudo.

Ou seja, se Trump e seus acólitos pensavam que o soft power da produção cinematográfica americana seria algo inalcançável para o restante do planeta, as coisas podem seguir outra direção. Somos inundados quase que diariamente pelo cinema do Tio Sam, assimilando supostos critérios de qualidade a partir da quantidade de filmes que engolimos. A recente quase-patológica repercussão do Oscar de melhor filme estrangeiro para “Ainda estou aqui” realçou essa circunstância, como se o filme de Walter Salles precisasse dessa legitimação para comprovar seu valor artístico. Muitos celebraram o Oscar como confirmação do status de periferia cultural “privilegiada” da produção brasileira. Entretanto, se a China virar o jogo, talvez venhamos a ser, em futuro não muito longínquo, inundados por filmes chineses – e aí tudo muda de perspectiva.

Shanghai Blues” se apropria das sutis artimanhas elaboradas por marqueteiros e artistas de Hollywood para vender o american way of life, quer dizer, a sociedade consumista aperfeiçoada nos EUA que tomou o globo terrestre. Mas o faz utilizando a linguagem cinematográfica para exagerar e satirizar as referências. O roteiro não tem nenhum pudor em manipular os acontecimentos de forma explícita, conduzindo artificialmente a história – mas sem provocar desconforto no espectador, ao contrário, envolvendo-o num sistema de coincidências aparentemente aleatório, mas com objetivos precípuos. Se um corte de energia apaga a luz e salva um personagem de um destino pior que a morte, ele também acaba favorecendo o reencontro do herói com a heroína.

Trata-se de um triângulo amoroso, com cores vibrantes e edição super ágil (Tsui Hark é também o montador), começando em Xangai, 1937 – quando os japoneses estão prestes a invadir a cidade, afetando a todos, até o cabaret na concessão francesa onde a delicada e vulnerável Shu-Shu é uma das estrelas. Sylvia Chang, a atriz, também é uma talentosa diretora, roteirista e cantora, tendo atuado soba batuta de Jia Zhangke e Bi Gan. Um soldado e aspirante a músico é o polo masculino do enredo, conhecido pela alcunha de Do-Re-Mi. Metade (ou mais) do filme se passa em 1947, ainda em Xangai, desta feita às voltas com hiperinflação pós-Segunda Guerra Mundial, uma situação monetária que acelera o filme – além, é claro, dos exército comunista comandado por Mao Tsé-Tung batendo nas portas da cidade.

Do-Re-Mi toca tuba em uma banda militar, e segue procurando por Shu-Shu – agora uma cantora de boate glamourosa e elegante, transformação bem conduzida por Sylvia Chang. Sua rival no coração do cantor é também sua room mate, Stool,  personificada por Sally Yeh, outra excelente atriz, cômica e sempre com os olhos exageradamente arregalados. As falas, inseridas habilmente na sequência frenética de imagens, dão o toque final nessa narrativa intensa e fluente.

Tsui Hark é um prolífico produtor (69 títulos) e diretor (53), nos mais variados gêneros. Conhecido em algumas versões como o “Spielberg” da China, outras como “George Lucas”, Hark é um prodígio. Atravessou os penosos momentos políticos chineses, começou a dirigir no final da década de 70, em Hong Kong – e hoje atua associado aos grandes conglomerados chineses de produção cinematográfica.

Se a China passar os EUA como potência tecnológica e econômica, como será esse novo mundo audiovisual?

4 Nota do Crítico 5 1

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