Curta Paranagua 2024

Da Vida das Marionetes

Um Homem Sob Influência

Por Fabricio Duque

Da Vida das Marionetes

​Assistir a uma obra do cineasta sueco Ingmar Bergman é receber uma completa análise cognitiva super-exposta da psique humana. Em “Da Vida das Marionetes” (1980), o espectador-observador-paciente é conduzido pelas ilimitadas probabilidades do ser, existindo enquanto pessoa social. É um passeio nas mais inconscientes e aumentadas angústias; nos medos que se desenvolvem mais perigosos que as obsessões.

Esta viagem, mitigada de todo e qualquer julgamento (teórico, objetivo e incisivo-irônico nas respostas), quer estudar um caso específico, embrenhar-se nas traduções definitivas dos porquês, na pluralidade libertárias do comportamento experienciado, no sadismo “corajoso” de descobrir causas primárias do nascimento de um assassino.

Da “Da Vida das Marionetes” busca descrever o “complexo estado da alma”, a vontade apavorada (“um sentimento recorrente, que persegue” o pensamento) que o protagonista (e que todos nós sentimos em algum determinado momento da vida) tem de querer matar. Sim, cada filme bergmaniano é essencialmente uma sessão de terapia.

Uma confissão profissional que permite que o analisado se dispa das máscaras, preocupações, desesperos, hipocrisias, moralidades. Tudo é verbalizado. O sexo que fica “mais gostoso” quando infiel (“a conotação moral negativa da liberdade sexual mútua”). É um embate de tentativas de choques. De um lado, a informação vomitada. Do outro, a técnica do psicanalista que dá asas à imaginação do paciente, o atraindo a uma teia da verdade absoluta a fim de captar as fragilidades impulsivas e vulnerabilidades premeditadas.

Da Vida das Marionetes” é um longa-metragem que não suaviza sua temática com palatáveis gatilhos comuns. Pelo contrário. Quer dizer muito mais do que se consegue captar. A história é construída pelo classicismo narrativo, como um filme livro. A psicanálise torna-se a real protagonista da história, por objetivar descrever em riqueza de detalhes a libertação da vontade da ação criminosa em palavras-remédios. Por elencar Freud e a questão dos sonhos “banais, tolos e insignificantes, para psicanalistas interessados”. Por ensinar (como um puxão de orelhas) que devemos ter mais respeito por nossos medos. Que a depressão é curada com “caminhada, café e conhaque”. Em Da Vida das Marionetes, Bergman explora, com intensidade e ousadia, a mente de um homem levado ao extremo a partir da história de Peter e Katarina, casal que teve um papel secundário em Cenas de um Casamento (1973).

Da Vida das Marionetes” corrobora o anti-Aristóteles, nos incitando que o ser humano realmente não foi feito para conviver em sociedade, citando em inferências, preceptoria a máxima de Jean- Paul Sartre: “o inferno são os outros”. Visto que Peter, em uma radical e passional autópsia da ama (ainda que não acredite), expõe com precisão “o querer impossível de humilhar, desafiar e ameaçar o outro”, de “cuspir na cara, agarrar no braço, brigar e gritar até que se derrama sangue”. “Um de nós triunfa, o outro é destruído. É perigoso com perguntas repetidas, pausas, ataques e saídas ensaiadas. Uma forma refinada de contato?”, conclui.

O psicanalista (“que é ótimo em apagar a identidade das pessoas, que ficam sem ego, sem medo”) aceita o jogo de xadrez. Desta vez não está em uma partida com a morte de O Sétimo Selo (1957), mas com a patologia acordada de um iminente e transformado psicopata. Tenta-se entender as diferentes partes do córtex cerebral, rebater com uma irônica lógica ultra-realista as anormalidades escutadas e alusões. Cada um sobrevive a si próprio como pode, jogando suas próprias individualidades defensivas, tentando arduamente não sucumbir, continuando com a racionalidade sem intuições, ainda que o “amor estranho amor” tenha “a mesma circulação sanguínea”.

Com controle absoluto da direção, Bergman cria em neste longa-metragem, um Thriller existencialista, não linear, de fotografia colorida-neon (à moda de um Rainer Werner Fassbinder) ao branco-e-preto, que confunde o perturbado diagnóstico da mente personalizada com a realista realidade da investigação e seus depoimentos que ajudam a solucionar o caso. Peter está sob influência dos outros. É também uma marionete dele mesmo. A trama intercala outras histórias narradas, em monólogos-confissões, com suas verdades cúmplices.

Da Vida das Marionetes é uma aula sobre a arte da análise, escrita pelo próprio Bergman. O roteiro nos imerge em temas-tabus de forma tão sincera, que parece que estamos em um mundo paralelo regido por François Truffaut com Lars von Trier. Jean-Luc Godard com Michelangelo Antonioni. Passando por John Cassavetes. “Quando se é gay, é impossível ser fiel, por causa do simples fato que não podemos ter filhos”, diz-se solto, mas que faz todo sentido, sobre o terror da velhice e suas rugas de um “velho reacionário infantil”, envolto em obscenidades e amores líquidos.

Entre “tristezas incomensuráveis”, desesperanças indefesas, “ruídos cegos”, “ironia: tipos de invalidez”, pessoas “patologicamente viciadas em intimidade”, “corpo como um obstáculo em uma confusão de sentimentos, fantasias e acordos”, o filme é retórico e “teórico”. Que se embrenha na sensação do sonho, na atmosfera etérea, esquizofrênica, simbólica e que direciona sinais de dentro ao lado de fora. É o “medo do silêncio”.

Da Vida das Marionetes” é muito mais que uma simples história sobre discussões de relação em um casamento. Em que “aceitaram as regras sem talento para o jogo”. Sim. Muito mais. É um Harold Pinter das sinapses. É um A Casa Que Jack Construiu, do diretor dinamarquês, exibido no Festival de Cannes 2018. É uma mórbida curiosidade à moda de Truman Capote. É uma crítica aos profissionais da mente que diagnosticam com obviedades padronizadas as causas da doença que gera a desgraça-crime.

Como outro ser humano, sendo também errante, pode dar o veredito tão concreto e definitivo? Pois é, Bergman sabe como ninguém entrar e sair da loucura escondida e a da já exposta, nos aplicando uma terapia de choque, nua e crua, das infinitas e deturpadas áreas-lóbulos e nos arrastando da “normalidade” aparente à catarse ruidosa, para que, por fim, o silêncio seja encontrado. E a verdadeira verdade revelada.

5 Nota do Crítico 5 1

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