Da Catarse à Crítica
Por Michel Araújo
Na filmografia de Leon Hirszman, a poesia e a cadência dramática são ferramentas de peso para seu estilo. Desde sua estréia no Cinema Novo em “Pedreira de São Diogo”, episódio o qual dirigiu em “5x Favela” (1962), Hirszman já mostrava um refinamento composicional e um apreço pelo desenho de som com seu uso pontual de silêncio. Posteriormente em seus trabalhos de ficção como “A Falecida” (1965) – primeiro longa-metragem de Fernanda Montenegro – e “Garota de Ipanema” (1967), foram se evidenciando as bases para uma mise-en-scéne rigorosa, escultural, quase fassbinderiana. O corolário desse encaminhamento é, pois, “São Bernardo” (1972), obra de forte peso do gesto, do corpo, e da duração.
O filme – baseado em obra de Graciliano Ramos de mesmo nome – trata da ascensão social e econômica de Paulo Honório (Othon Bastos), homem que trabalha como agiota e caixeiro-viajante num Brasil pós-colonial e pré-industrial, e se torna um rico e proeminente fazendeiro na cidade de São Bernardo. Paulo se casa por convenção com a professora da cidade, Madalena (Isabel Ribeiro), e seu casamento vêm a uma ruína estrutural em função de suas paranóias e sua violência. A psique paranoide de Paulo é investida não apenas em um medo constante da traição, mas também em sua fobia a ideais políticos socialistas, que representam uma ameaça ao status quo, e portanto a sua posição social.
O filme trata de uma viscosa duração do tempo, com planos longos, e visivelmente bem orquestrados e elaborados. A câmera permanece fixa na grande maioria dos planos, porém longe de uma lógica expansiva e fugidia que vemos em diversos exemplos contemporâneos, a mise-en-scéne é rigidamente postada, estabelecendo peso em cada gesto, cada movimento. O trabalho de corpo dos atores é extremamente valorizado por essas composições fixas, esculturais. A representação colérica de Othon Bastos em oposição à fixidez de seus contracenantes se torna tão mais intensa pela duração, pelo tempo que decorre até sua explosão. O trabalho com a duração do tempo permite um ciclo de ascensão e queda, de cólera e calma, o personagem de Paulo está constantemente irrompendo de raiva e se postando de volta em seu lugar, se resignando com a inconclusividade de suas tendências sociopatas e violentas.
“São Bernardo” assume um caráter hermético em suas abordagens políticas, porém, diferente do que se veria no neorrealismo de Nelson Pereira dos Santos ou no barroco épico alegórico de Glauber Rocha, Hirszman incorpora uma sutil poesia para permear o que antes seria um realismo naturalista. O gesto, destarte, vem para romper a naturalidade. Da erupção violenta ao olhar de soslaio, ao estado catatônico ante a desgraça, o gesto abre uma dimensão de significação para além da representação pura, imaculada. Um estranhamento – no sentido chklovskiano – emerge, somando ao drama uma potência mesmo farsesca. E o filme se mantém perfeitamente equilibrado nessa dualidade – a condução emocional pelo drama, e a condução racional pela farsa. Não há peso em favor de nenhuma das duas, e nesse ponto reside o gênio do diretor. Hirszman reconhece a pertinência da crítica ao pensamento reacionário – lembremos o contexto dos “anos de chumbo” da ditadura militar em que o filme foi realizado – mantendo ainda de cabeça erguida seu compromisso com a linguagem dramática e a catarse.
“São Bernardo”, por não se comprometer em demasia com nenhum regime estético, acaba por cumprir todos com primazia. O filme não é aristotélico nem brechtiano, e justamente por isso demonstra uma perfeita compreensão da representação aristotélica e da representação brechtiana. Leon Hirszman demonstrou ao longo de sua carreira uma versatilidade prolífica, trabalhando com excelência no campo do documentário e da ficção – “Eles Não Usam Black-Tie” (1981) e “ABC da Greve” (1990) são efetivamente a mesma história, sob duas chaves diferentes. E para além de trabalhar em dois campos separados, Hirszman conjugava formas: “Imagens do Inconsciente” (1987) é a fusão ideal entre ficção e documentário. Ficção nas narrativas que os pacientes esquizofrênicos de Nise da Silveira criavam. Documentário, a própria narração dessas histórias. “S. Bernardo” casa o clássico e o moderno, a mise-en-scéne teatral e a cinematográfica, a poesia literária com a poesia visual. A palavra e a imagem, a ideia e o gesto. “São Bernardo” é a crítica de “Maioria Absoluta” (1964) com a sublimação de “Cantos de Trabalho” (1975). É a soma de ambos os Leons que existem na obra de Hirszman.