Santiago, Itália
Tema compensando a forma
Por Pedro Guedes
É de se esperar algo de cada novo projeto do cineasta italiano Nanni Moretti, que só nos últimos dez anos presenteou os cinéfilos com a comédia “Habemus Papam“, que enfocava um conclave tendo que lidar com as crises do novo papa escolhido, e o drama “Mia Madre”, que recebeu elogios efusivos no Festival de Cannes em 2015 (isso porque estou citando apenas dois exemplos recentes!). Dito isso, quando comparado aos trabalhos anteriores de Moretti, o documentário “Santiago, Itália” revela-se um trabalho um pouco mais irregular, já que suas condições formais são, de modo geral, decepcionantes – em compensação, a maneira como o diretor aborda o (importantíssimo) tema eleva consideravelmente o resultado final, o que é um alívio.
Dividindo a história em dois núcleos que parecem distintos à primeira vista, mas que se complementam de forma inquestionável ao longo da narrativa lembrada por Moretti, “Santiago, Itália” concentra-se basicamente em depoimentos de cidadãos de esquerda que, na década de 1970, se posicionaram contra o regime do ditador Augusto Pinochet, que tomou o poder do Chile a partir do golpe militar de 11 de setembro de 1973 e que deu início a uma das ditaduras mais rígidas e sanguinárias da América Latina. Ao mesmo tempo, vemos a ação da embaixada italiana que forneceu abrigo a muitos perseguidos políticos, oferecendo também asilo a estes mesmos cidadãos.
De um ponto de vista puramente estilístico, “Santiago, Itália” é, em resumo, uma obra frustrante: limitando-se a vários entrevistados falando diante da câmera sem nenhuma imagem complementar, um dos mais batidos e ultrapassados dentro do gênero “documentário”, o longa se resume apenas a estes depoimentos e mal oferece imagens de arquivo que instiguem o espectador, revelando-se uma experiência visualmente pobre (ainda mais se levarmos em conta os padrões do Cinema, que habitualmente exigem uma linguagem mais… elaborada do que a apresentada aqui). Em termos formais, o máximo que Moretti consegue entregar é um documentário que parece feito para a TV, o que é uma pena. Mas o pior, no entanto, é a falta de objetividade que o cineasta acaba transparecendo em alguns momentos, concentrando-se nos relatos dos entrevistados a ponto de não saber ao certo a hora de mudar de assunto/entrevistado – e, de vez em quando, a impressão que fica é de que o filme não tem muita certeza de onde quer chegar.
Dito isso, o fato é que “Santiago, Itália” ainda assim lida com um tema que, a julgar por sua relevância histórica, tem tudo para compensar os problemas formais que citei anteriormente – e a sorte, portanto, é que Moretti consiga desenvolver o tema de maneira eficaz. Afinal, um povo sem memória é um povo sem História e, a partir do momento em que começamos a nos esquecer das tragédias do passado, nos submetemos à possibilidade de deixá-las se repetir. Quando vemos os entrevistados falando sobre as situações sociais e políticas do Chile nos anos 1970, percebemos o quanto a ditadura de Pinochet impactou a vida não apenas daqueles jovens, mas de toda a sociedade que logo se viu dividida por um regime fascista. E o mais chocante é constatar as emoções que tomam conta dos entrevistados, que se entregam a incessantes lágrimas e nós na garganta assim que começam a expor suas memórias (Moretti acerta ao dedicar um bom tempo a estas emoções, permitindo que estas soem ainda mais comoventes).
Além disso, é admirável que o filme consiga estabelecer com cuidado e clareza as ligações contextuais entre o Chile e a Itália, enfocando tanto aqueles que lutavam nas ruas chilenas quanto aqueles que se viam conectados a partir da embaixada italiana – e justificando, claro, o título “Santiago, Itália” de maneira inegável. Para completar, é possível também traçar um paralelo com o nosso próprio país, já que, quando os entrevistados relembram tudo que levou ao golpe e à ditadura de Pinochet, torna-se escancarada a similaridade entre a situação do Chile naquela época e a do Brasil de hoje. Neste sentido, o documentário também é extremamente importante – e revelador – para os espectadores brasileiros.
E há uma cena que encontra-se desde já entre as mais memoráveis que o Cinema produziu em 2019: aquela em que Moretti entrevista um ex-militar, permitindo que este fale suas atrocidades habituais e chegando ao ponto de levantar-se da cadeira para tentar acalmá-lo. Diante desta discussão brevemente acalorada, o cineasta expõe as inclinações fascistas do entrevistado ao passo que declara sua posição política. É assumi-la é um gesto de honestidade que considero admirável.