Salomé
O amor na fábula do loló
Por Fabricio Duque
Assistido durante o Festival de Brasília 2024
A essência, mais intrínseca, do cinema é ser/estar livre para se permitir a expansão de infinitas possibilidades de criação em suas obras. Ao buscar a desconstrução formal, distanciando-se de paradigmas já internalizados e padronizados pelo público, os filmes, chamados autorais (de invenção), conseguem ir além de suas próprias ideias, conceitos e propósitos. Um desses exemplos é o longa-metragem “Salomé”, integrante da mostra competitiva da quinquagésima sétima edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, e que foi o grande vencedor de 2024, incluindo o prêmio de Melhor Filme pelos júris popular e oficial. Agradou tanto à crítica e público. Pela história da sétima arte, filmes assim já nascem clássicos.
Dirigido pelo pernambucano André Antônio (de “A Seita”), o drama/romance queer de ficção científica, “Salomé”, traz uma estética imagética como condutora focal em sua linguagem, que evoca o tom da metafísica sensorial, mais hipster, mais neon e mais coloquialmente blasé, em que tudo está envolto numa atmosfera de tempo suspenso da realidade. Essa aura excelsa do longa-metragem pode ser entendida/definida pelas evocações referenciais de estruturas narrativas de outros filmes com a estética particular dos anos setenta, como por exemplo Andy Wahrol e Keneth Anger, que expressavam, em suas obras, suas motivações/impulsos numa transgressora manifestação artística de ode máxima à liberdade do desejo/instinto. Os corpos, em cenas de sexo explicito, entre superexposições dos fetiches, querem apenas a conquista da naturalização do meio em que vivem.
Esses filmes abordavam personagens transsexuais, travestis e gays vivendo em um mundo/universo normalizado sem preconceitos. Se olharmos mais à fundo, outros cineastas também, provavelmente, “beberam” nesses autores/realizadores do underground dissidente que misturava surrealismo, homoerotismo e ocultismo: Pedro Almodóvar, Bruce LaBruce, Gaspar Noé e Daniel Nolasco. Sim, há muitas semelhanças, mas o que faz de “Salomé” ser único (e não repetir invenções alheias, apenas incorporando como uma ideia esses atravessamentos) é a sua forma de se apresentar como uma fábula estilizada de romance científico, que se inicia com um desfile de modas, em andadas de efeito e performances drag à moda de RuPaul. Assim, esse conto de fadas perceptual, de se almejar uma liturgia mais herege ao mitigar os limites comportamentais (mais andrógeno de desconstrução do próprio gênero “lutado” na contemporaneidade) do ser perante à sociedade, emerge todas as contradições existenciais.
“Salomé” quer “causar” sua ideologia na utopia do possível, pelo realismo mágico de um cotidiano etéreo, de cores muito vivas, que pulsam em corpos em transição física, cósmica e na própria consequência do abandono amoroso, que tendencia uma introspecção que pode alavancar uma loucura, esta que por sua vez desencadear “surto, deslumbramento” e “pedidos radicais” da mente por causa da perda da consciência e sua razão que a mantém “normal e medicada”. “Salomé” é na verdade um delírio obsessivo do amor não mais correspondido, que exigiu a cabeça de seu “ex”. “O mistério do amor é maior que o mistério da morte”, diz-se. Sim, tudo aqui é para ser estranho e propositalmente fora do tom (para que esse desconforto entre em transmutação orgânica), como se fosse um transe, um estendido sonho vívido.
É muito curioso o cinema que André Antônio faz, “brincando” com imaginação real, realidade projetada e muito desejo no olhar. Sim, ”Salomé” é um filme com tesão (e tendo a trilha sonora que lembra a estética musical de Xavier Dolan e seu “Amantes Imaginários”), que busca a cadência entre o abstrato personificado, o invisível captado e o naturalismo da forma anti-naturalista (um que de “Pele de Asno”, de Jacques Demy). A protagonista, por exemplo em uma cena, uma mulher, olha com luxúria para o “boy”, um homem, este que retribui o desejo, mas na “hora do vamo ver”, os “papéis” são “invertidos”, moralmente transgressores, “permitem” variações subjetivas dos fetiches (e do gozo), “trocam” MD por um “loló” moderninho e “sonham” com “mescalina”.
A maestria de “Salomé” é sua própria contradição. É misturar concretude-verdade com a cafonice de uma estética de criatividade excêntrica. É cozinhar humor típico pernambucano, “terreno ionesco”, rituais de gênero, respostas no tarô e estar entre o “refinado”, o “selvagem”, o zoom direito (muito advindo da Nouvelle Vague) e a decisão de “sustentar o bofe” (e “virar uma ONG”). Sim, “Salomé” é uma versão de presente futurista. A personagem-mito transforma-se em um Avatar para na loucura, transcender ocultismos psicopatas aprisionados no mais fundo do inconsciente. Este é um filme que a crítica não deveria procurar traduções e definições, visto que a alma-liberdade dessa experiência que reside na compreensão do apenas sentir.
Além do troféu de Melhor Filme dos júris popular e oficial, “Salomé” foi agraciado com os prêmios de Melhor Roteiro (para André Antônio), Melhor Trilha Sonora (para Mateus Alves e Piero Bianchi), Melhor Atriz Coadjuvante (para Renata Carvalho), Melhor Direção de Arte (para Maíra Mesquita), com o prêmio da Abraccine e com o prêmio do Canal Like.