Rumores
Terra em Transe
Por João Lanari Bo
E se a violência que afeta um dos países mais complexos do mundo – um dos não, certamente o mais complexo – fosse amplificada por ondas de desestabilização provocadas pelo consumo demente das redes sociais? É essa a proposta de “Rumores”, ambicioso e assustador longa-metragem dirigido pelo cineasta indiano Sudhir Mishra, que mergulha sem rodeios nas intrigas políticas na cidade de Sawalpur, localizada no Rajastão – o maior estado da Índia em área, com população de cerca de 70 milhões de habitantes. Boa parte (cerca de três quintos) do Rajastão é coberta por terras desérticas, nomeadamente o Deserto de Thar: a oeste, a fronteira é com o Paquistão – país onde os muçulmanos são maioria.
Dentre as fissuras que atormentam a Índia moderna, como é sabido, está a perseguição que nacionalistas hindus perpetram contra a minoria muçulmana. Como é frequente nos filmes com fundo político produzidos no estilo Bolywood, a história começa com o futuro vice-líder do partido no poder, Vicky Bana, sendo atacado em um comício. Para acertar as contas, um de seus assessores acaba matando com crueldade um humilde açougueiro. Uma conversa de Vicky com o assassino viraliza na rede Qwitter (nome ficcional de ressonância imediata). Sua noiva, Nivi, filha de um poderoso cacique local, irrita-se com o comportamento do futuro marido e decide fugir.
No caos entrópico que se segue, ela cruza por acaso com Rahab, um publicitário recém-retornado dos EUA e … muçulmano. Os dicionários definem entropia como o grau de desordem ou de imprevisibilidade da informação: quanto pior a informação no sistema, maior a entropia. As sucessivas viralizações que irrompem conduzem a narrativa (e a violência), provocando ações e reações. Elas propagam-se instantaneamente, pois celulares são utilizado por todas as classes sociais, e distorcem inapelavelmente a informação – logo, intensificam o caos. “Rumores” se passa em uma noite vertiginosa, com diversos personagens e situações que parecem estar em rota de colisão permanente, tramas e subtramas, identidades religiosas e sociais, gangues e multidões à espreita da eclosão de violência. Em particular, a questão do gênero: como se dá a interseção das personagens femininas com essa realidade, como se dá o agenciamento entre corpo, mente e decisões que as afetam, como podem aparecer, nesse caldeirão de contradições, oportunidades de empoderamento?
A Índia é considerada a maior democracia liberal do mundo. Concorre para isso uma identidade nacional secular reconhecida, apesar de sua diversidade étnica, linguística e religiosa. Em contraponto a essa leitura otimista, persiste uma violência comunal de desdobramentos imprevisíveis, aguçada a partir da independência do domínio britânico em 1947. Tudo isso, naturalmente, numa proporção desmesurada, dada a escala do país, o mais populoso do planeta, além da profundidade (e obscuridade) de suas tradições históricas e culturais. Um dado concreto é a atual predominância do BJP (Partido do Povo Indiano) na vida política do país. Fundado em 1980 para fazer oposição Partido do Congresso Nacional Indiano, o BJP, liderado pelo Primeiro-Ministro Narendra Modi, pratica um firme conservadorismo aliado à ideologia liberal no plano econômico. Desde 2019, é o maior partido do país em termos de representação no parlamento nacional e nas assembleias estaduais e, de longe, o maior partido do mundo em termos de adesão primária.
“Rumores” atualiza esse cenário macro para o universo digital contemporâneo, essa entidade abstrata que atinge a todos e a cidade de Sawalpur. De modo geral, as organizações nacionalistas hindus promovem deliberadamente a violência comunal para obter apoio em suas bases e promover seus interesses políticos: o aumento dos assassinatos e intimidações públicas coincidiu com a ascensão dos nacionalistas na política indiana. Quando Rahab ajuda Nivi, atacada pelos capangas de Vicky Bana em um mercado, trata-se de um muçulmano tentando salvar uma garota hindu. Mas Vicky tem agora um assessor de mídia social: a melhor defesa é o ataque, diz ele, e convence o político a permitir a postagem de uma fake news, em que Rahab e Nivi são declarados um casal, “amor-jihad”. A dupla agora precisa ser capturada, envergonhada, punida e morta.
Não importa de que lado está a multidão – “Rumores” pode ser visto como registro de uma era em que alarmes falsos são suficientes para erupção de violência. As pequenas ruas de Sawalpur remetem a uma paisagem feudal, arcaica – mas a modernidade das motos, veículo predileto desse mundo em transformação, energiza o cenário. A fotografia marcante do colombiano Mauricio Vidal, responsável entre outras pelas imagens do seriado “Narco”, introduz uma luz latino-americana – iluminando um real, à primeira vista, inapreensível.