Rumo ao Norte
Verdades familiares
Por Vitor Velloso
Durante o Olhar de Cinema 2021
“Rumo ao Norte”, de Angelo Madsen Minax, longa premiado na Mostra Outros Olhares, é um documentário que carrega algumas similaridades com parte da produção contemporânea, desde seu material particular narrado pelo diretor até uma contextualização subjetiva do momento de seus registros. O que difere esse filme dos demais é justamente a maneira como o longa consegue adentrar em um jogo reflexivo dos “papéis familiares” e de sua relação com parte dessas representações, suas memórias, afetos e desafetos.
Trata-se, sem dúvida, de um caso que mesmo partindo de uma perspectiva interna, consegue expandir sua abordagem para caminhos inusitados. Em determinado momento, cria uma dimensão que une as repressões que sofre com a própria maneira que um julgamento moral desencadeia uma decadência familiar cada vez mais profunda. Existem verdadeiras confissões projetadas na tela, mas quanto mais os espectros passam a tocar outras dimensões, mais a forma vai interiorizando suas questões. É uma dialética que funciona bem em “Rumo ao Norte”, pois desafia o espectador na própria relação turva com seus personagens, admitindo erros, desvelando projeções familiares, dependências e uma série de problemas internos que antes pareciam indecifráveis para Angelo. Em um depoimento admite sua incapacidade de compreender a irmã em sua totalidade, minutos depois vemos ela depositar parte de seus problemas pessoais na maneira como os pais lidavam com as transformações de Angelo. Porém, o interessante aqui é ver que o documentário não cai apenas nessa terapia que vai cavando os fantasmas internos, mas sim que a consciência desse registro, atrelada ao passado, vai se modificando conforme a montagem constrói caminhos que dinamizam as próprias relações.
Se em um primeiro momento a viagem e o luto são fatores para iniciar a obra, a coisa toda vai se modificando, procurando retratos e projeções de uma inconsciência, seja no outro ou na auto-reflexão, são desdobramentos que vão se somando e dando corpo ao documentário. Não porque há uma perda de controle durante o processo, mas sim porque a montagem é capaz de organizar esses registros sem perder de vista que esse retrato envolve culpa, julgamento, confissão e dores que não se materializam. E é possível que se torne uma face da sociedade que é tomada por um orgulho dessa fragmentação passível de julgamentos externos. Um conservadorismo que não está presente apenas de maneira institucional, mas nas relações mais profundas, em um jogo de projeções que destrói a própria percepção de si. Nessas alteridades, as experiências vão se sobrepondo à traumas enquanto a memória é exposta com crueldades inconscientes e conscientes. “Rumo ao Norte” lembra outras obras que foram exibidas no Olhar de Cinema, porém possui um rigor formal que não se perde em devaneios particulares, pelo contrário, suas reflexões surgem justamente pelo encontro de um lugar, com pessoas, suas histórias e verdades x perspectivas x opinião. É quase um registro de álbum de família com os fatos sendo jogados à luz e contra parte das memórias que se tinha sobre a mesma. Boa parte dessas verdades expostas são cruéis, intencionalmente ou não.
Em um momento curioso do filme, as pessoas estão reunidas em uma ocasião nada alegre e a música que toca no ambiente é de uma ironia infeliz que torna-se motivo de encontros e outras imagens que vão lembrar desse “acontecimento”. Não por acaso “Rumo ao Norte” se diferencia das demais obras contemporâneas, mesmo com tantas similaridades na linguagem, pois possui um trato na organização de suas imagens, que realmente consegue criar um escopo que não encerra a projeção em si, ampliando para papéis, tradições e conservadorismos que estão na sociedade, desde seus julgamentos morais e fabricados até a transferência da culpa.
Por mais que exista um problema de ritmo na metade do longa, não é o suficiente para tornar a coisa toda tediosa e desinteressante. O que pode acabar pesando, de forma situacional, é a velocidade com que a obra salta de uma questão para a outra, por vezes sua intensidade acaba trazendo algum grau de confusão.