Rumo a Uma Terra Desconhecida
Vida longa à Síria!
Por João Lanari Bo
Festival de Cannes 2024
Eu não odeio as pessoas.
Eu não roubo de ninguém.
No entanto,
Se eu estiver com fome,
comerei a carne do meu usurpador.
Cuidado, cuidado com a minha fome,
E com a minha raiva.
(Mahmoud Darwish)
“Rumo a Uma Terra Desconhecida”, realizado em 2024, é uma produção absolutamente contemporânea, dirigido pelo documentarista palestino-dinamarquês Mahdi Fleifel – é sua primeira ficção. A palavra latina “contemporaneus” é a origem da palavra “contemporâneo” em português: “contemporaneus” significa “do mesmo tempo”, indicando que algo ou alguém existe ou vive na mesma época. É a primeira percepção que pode ser sacada de uma narrativa como essa, que de certa maneira traz à tona dúvidas e anseios que escapam ao contexto do filme propriamente dito – por exemplo: para um palestino, depois de ter sido expulso de sua terra natal, qual é o seu destino? Ou ainda: se sua existência inevitavelmente descamba para uma rotina de pequenos delitos, cada vez mais graves, como funcionam as leis que regulam seu comportamento?
Chatila (Mahmood Bakri) e seu primo, Reda (Aram Sabbah), vivem em nossa época, são nossos contemporâneos. Começaram sua trajetória de heróis saindo de um campo de refugiados no Líbano, com um desejo – imigrar para a Alemanha, núcleo duro do capitalismo europeu, promessa de emprego e, quem sabe, alguma ascensão social. Chatila deixou para trás mulher e filho: Reda, mais jovem, é dotado de sensibilidade especial, alerta sua mãe no telefone (signo marcante de contemporaneidade, acessível e prático, o telefone celular é recurso imediato de sobrevivência para ambos). A ação de “Rumo a Uma Terra Desconhecida” se passa toda em Atenas, a meio caminho entre o Líbano e a Alemanha, tão perto e tão longe do objeto de desejo.
O Líbano abriga 12 campos de refugiados palestinos, dos quais alguns foram destruídos durante a Guerra Civil Libanesa (1975-1990) e outros foram evacuados. Esses campos, localizados em várias áreas do Líbano, incluindo Beirute, sul e norte, são residências de cerca de 500 mil refugiados palestinos. Segundo a ONU, seriam mais de 5,6 milhões de refugiados palestinos, boa parte vivendo em 68 campos existentes na Jordânia, Líbano, Síria, Cisjordânia e Faixa de Gaza. Os campos foram estabelecidos a partir das guerras que se tornaram frequentes na região, após o estabelecimento de Israel em 1948, quando muitos residentes foram forçados a fugir de suas casas e aldeias, êxodo que ficou conhecido como “Nakba”. As famílias de Chatila e Reda são vítimas e testemunhas desse processo histórico – e contemporâneo.
O atual conflito em Gaza elevou a questão dos refugiados palestinos a um nível absurdo de exacerbação, um fenômeno midiático de limpeza étnica inédito num mundo sobrecarregado de delírios dessa ordem. Atenas é uma espécie de limbo nessa hierarquia: é porta de entrada para a Europa, certamente, mas apenas para os happy few documentados. Rodado com uma câmera 16 mm, pouca luz e realismo cru, “Rumo a Uma Terra Desconhecida” mostra a capital grega como espaço de passagem claustrofóbico, com poucos lampejos do que seria o ideal de conforto esperado de um país europeu. Chatila, esperto e manipulador, executa com o primo roubos de bolsas de idosas desprevenidas, e fecha os olhos quando Reda atua como garoto de programa para sexo casual no parque. O objetivo é conseguir passaportes falsos e poderem seguir para a Alemanha.
Filme político, sem o didatismo do chamado cinema ativista, “Rumo a Uma Terra Desconhecida” não faz julgamentos morais. Mas Reda e Chatila entram em conflito, Reda é vulnerável a drogas, tudo está a prestes a ruir quando entram em cena dois personagens que irão acelerar a trama: Malik (Mohammed Alshurafa), garoto de 13 anos vindo de Gaza, sem pai nem mãe, almejando ir para a Itália onde o espera a tia; e Tatiana, uma grega frágil e solitária, que é atraída por Chatila e consente em fazer o que ele quer. Um plano mirabolante se desenha com essa dupla improvável, que poderá ser a tábua de salvação para Chatila e Reda.
“Vida longa à Síria” é a senha para a fuga final da trajetória da dupla de refugiados em Atenas – agora imersos num thriller de suspense com um incontornável toque de melancolia. Há um sofrimento em quem já vivenciou mais do que se esperava de sofrimentos, sejam coletivos ou individuais.
Como diz Edward Said, na abertura do filme:
De certa forma, é uma espécie de destino dos palestinos não acabar onde começaram, mas em algum lugar inesperado e distante.