Rosa Tirana
O folclore e a memória
Por Vitor Velloso
Durante a Mostra de Tiradentes 2021
“Rosa Tirana” de Rogério Sagui é uma obra que se destaca brevemente dos outros dois filmes exibidos na Mostra Aurora de 2021, por não assumir o contexto e a fórmula como motor para produção. O filme é uma espécie de anti-Bacurau, pois não trabalha com a representação dada por uma objetiva importada, imprime na tela o registro de um Nordeste que se curva ao olhar da criança (que em “Bacurau” é assassinada), para trabalhar o elemento fantástico a partir do ponto basilar da cultura regional, o folclore como mostra mitológica da vida.
E aqui é um caso curioso da utilização do fantástico como questão formal para a estrutura e linguagem, pois surge a partir dos dramas da protagonista em uma busca que sofre com a seca mas possui o respaldo da fé, outro ponto de divergência do longa de Kléber e Dornelles. Existe aqui a materialização da fé, não apenas como uma discussão tautológica da cultura brasileira que jamais pode se alienar do debate totalizante de nossa formação, mas como impulso que atravessa o campo estético e molda a estrutura da narrativa. Sem uma criação particular, mas a transposição da cultura popular ao quadro.
Porém “Rosa Tirana” não consegue costurar essas ideias de maneira tão funcional. Os motivos são diversos.
As articulações do texto com a imagem são fragilizadas por momentos de excessivo trato expositivo, isso ocorre por uma falta de consistência em momentos onde a interpretação passa a ser o centro da tela. Dumont até rouba uma cena e lembra que “Nossa memória é saudade perdida na areia fina.” Mas a cena parece deslocada do todo, serve como presságio e luto sem o impacto da virada de perspectiva que almejava.
O surgimento dessa matéria do sertão, folclórica e mística que busca Rosa, é uma ponta narrativa introduzida como entidade. Até para o filme. Não existe uma construção que vislumbre o materialismo como elemento de unidade, apenas como desprendimento de uma narrativa que transita entre dois campos distintos.
E por essa razão, a própria conclusão desse traçado mitológico parece uma catarse pouco elaborada, mesmo no campo da fé, onde essa crença ultrapassa explicações demasiadas.
Ainda assim, “Rosa Tirana” possui uma consciência cultural que vai se abrindo conforme a projeção avança. A cantoria penteia o longa, abraça um sentimento quase inerte de um Brasil que dificilmente pode se expressar perante a seca, a fome e o subdesenvolvimento. E quando vêm, quase sempre é dividindo espaço com a tristeza. Não à toa, a quebra dessa recorrência se torna um dos grandes impulsos do filme. Mas até lá, o espectador deve se contentar com pouca convicção desse fantástico e diversas ligas frágeis tornam a experiência um punhado de altos e baixos.
Existe aqui um sincretismo de ideias e mitos, seja a partir da iconoclastia ou de uma “representação” do “irrepresentável”. A figura de barro é uma espécie de placebo da narrativa, funciona em determinado sentido, mas reforça os nós que a narrativa enfrenta para alçar voo. Já a dança folclórica próxima ao fim conhece até um efeito interessante na obra, desvirtuando alguns encaminhamento formais que vinham sendo construídos, dialogando brevemente com um recorte mais palatável dessa ciranda mítica. Contudo, o sentimento é sempre incompleto, pois a forma com que se constrói desarticula parte dessa força que surge de uma base tradicional, histórica, empírica, terceiro mundista, mística etc.
“Rosa Tirana” é um filme consciente de seus objetivos mas bambo em sua organização de ideias. É o caso de muitos outros cineastas que o tempo vai moldar e nos trazer obras gratificantes. Rogério Sagui consegue um destaque na Mostra Aurora, com problemas, deslizes, fragilidades, mas demonstra uma atitude distinta da maioria das obras exibidas na competição, buscando os louros e os aplausos da burguesia. “Rosa” é mais honesto, até se alia à parte do movimento cinematográfico nacional com o realismo fantástico mas faz isso com propósito que já o diferencia dos demais.