Artigo
Roger Corman e a visão total do cinema
Por João Lanari Bo
Roger Corman é conhecido por muitas alcunhas – artesão, artista, independente, produtor de kitsch, mini-mogul, mentor, pão-duro e Rei dos Filmes B. Começou na Marinha, formou-se em engenharia – ficou quatro dias no emprego – e aprendeu seu ofício no final da era dos grandes estúdios nos anos 40, para se rebelar na sequência contra Hollywood e definir-se como um verdadeiro independente. Saiu produzindo e dirigindo filmes, um atrás do outro, começando em 1954 com o impagável “Monstro do fundo do oceano”, cuja heroína flagra uma ameba gigante de um olho só, mas quando tenta contar às autoridades, ninguém acredita nela. Boa parte das suas produções, do horror ao exploitation – cuja definição é “filmes apelativos que abordam de modo mórbido e sensacionalista a temática de que tratam” – tem exatamente essa premissa, ninguém acredita no que alguém vê. O ápice da vertente cormaniana no cinema é o fenomenal “O Homem dos olhos de raio-X”, de 1963, onde um cientista, magistralmente interpretado por Ray Milland, quer superar os dez por cento da visão humana e alcançar a visão total, absoluta. Rogério Sganzerla analisou a fita desse jeito:
“O tema do filme em questão: o olho, isto é, o cinema – e não será necessário lembrar a imagem inicial, a anatomia de uma retina dilacerada ou o próprio título da película. Nada mais moderno – e nada mais barroco– do que um filme cujo objeto é o cinema, de um filme que se pensa por isto mesmo, voltado para si ou contra si”.
Para chegar a esse estado absoluto, nosso cientista utiliza dispositivos artificiais, fetiches tecnológicos que expressam a subjetividade delirante de alguém socialmente classificado como investigador do conhecimento. O desejo de extrapolar os limites da visão – em última análise, da narrativa cinematográfica, ou ainda, do cinema – termina levando o personagem à autodestruição, pois passou a ver “o absoluto, a exercer a totalidade da visão divina” – ou, como insistem os diálogos do filme, “é um deus”. Prossegue Rogério:
“O drama do personagem é pretender o absoluto: querer ver. Mas há os riscos do jogo; chega, pois, a perceber o assim chamado “fundo das coisas”, e acaba sofrendo porque vê demais. Para o cientista ambicioso não há o cotidiano, as aparências, os pequenos gestos: o mundo não passa de sombras irrecuperáveis, andaimes perdidos, esqueletos apressados, carcaças e chassis de automóveis”.
O desejo é um só
A obsessão de Corman é a mesma do cientista-louco, mas com sinal invertido: para ele o que interessa é o lúdico, o cinema como mecanismo mágico de atualização simbólica. Basta uma consulta ao infalível IMDb para se dar conta da massa crítica dessa obsessão: 416 créditos como produtor, 56 como diretor, 43 como ator, 11 como roteirista (acesso em 13 de maio de 2021). No último crédito, seu nome aparece listado como produtor executivo de “O Demônio da Selva”, longa do cineasta peruano Rey Cajacuri lançado em fevereiro de 2021 no Peru, com a seguinte sinopse:
“Cinco jovens turistas americanos vão de férias ao Peru. Nas profundezas da selva amazônica, eles participam do antigo ritual inca da Ayahuasca. Enquanto tentam encontrar a cidade perdida de Pajaten, eles são capturados por um predador feroz. Chamado de TUNCHI pelos nativos, é o protetor da selva e de seus tesouros, um demônio extraordinariamente poderoso que pode habitar qualquer criatura viva.”
Roger Corman completou 95 anos no último dia 5 de abril. Sua carreira cinematográfica é um loop interminável: é impossível imaginar uma retrospectiva integral de Corman, como se faz habitualmente nas cinematecas com os grandes diretores. Mas basta assistir dez filmes seguidos de Corman para ingressar nesse imaginário de alteridades além da imaginação, uma sucessão de estados psíquicos-motores que habitam as máquinas-desejantes de nosso inconsciente e que insistem em … retornar, reaparecer ao alcance de um clique. Alguns truques dessa produtividade: a ideia fixa na eficiência econômica da produção, na rapidez das decisões, em tudo – roteiro, personagens, iluminação, cenários – sempre de olho na sustentabilidade financeira, naturalmente; utilização das tabelas de sindicatos para pagar técnicos e atores, garantindo a qualidade da imagem impressa no celuloide; sempre que possível, um take rodado por cena, para não perder tempo na produção; e uma conexão permanente com os anseios da audiência, como se fosse um eletrodo conectado no cérebro dos espectadores. Uma tal versatilidade permitiu a Corman trafegar do cinema de gênero, formato clássico dos anos 50, para os filmes da geração “New Hollywood” dos anos 60 e 70 – aliás, a maioria das estrelas desse período de ouro do cinema americano, como Jack Nicholson, Francis Coppola, Martin Scorcese, Robert de Niro, Joe Dante, Peter Bogdanovich, Peter Fonda, Dennis Hopper, Ron Howard, Jonathan Demme, entre outros – trabalhou com o mini-mogul.
As soluções de baixa produção que Corman experimentou à exaustão – que implicaram também numa habilíssima maestria de linguagem, ou seja, cortes precisos na montagem, domínio absoluto de cada centímetro quadrado do plano cinematográfico, movimentos certeiros de aproximação da câmara – acabaram migrando para as grandes produções. O exemplo mais gritante é o fabuloso “Tubarão”, de Steven Spielberg, de 1975: ninguém menos do que Vincent Canby, o poderoso crítico do New York Times, escreveu quando do lançamento do filme; “mas o que é ‘Tubarão’ senão um filme de Roger Corman com grande orçamento?” O filme de Spielberg e “Guerra das Estrelas”, de George Lucas, impactaram decisivamente, como se sabe, os sistemas de produção, distribuição e exibição nos Estados Unidos, inclusive e sobretudo nos independentes. Anos mais tarde, em 1993, Corman produziu o pioneiro “Quarteto Fantástico”: escrito em três semanas, custou apenas 1 milhão e meio de dólares e foi rodado em 28 dias; nunca foi lançado, mas cópias ilegais começaram a circular depois de alguns anos. Logo, a franquia entrou no circuito e deu no que deu.
O olhar do outro
Com o tempo, Corman passou a atuar também como distribuidor, circulando em todas as brechas possíveis: das negociações empedernidas com exibidores à utilização do circuito de cinemas drive-in, das produções feitas diretamente para o mercado de videocassete aos contratos exclusivos com emissores de TV a cabo. A empresa que criou em 1970, “New World Pictures”, entrou também na distribuição de filmes estrangeiros, um mercado difícil nos EUA, como se sabe: as obras-primas de Bergman, “Gritos e Sussurros” (1972), e “Amarcord” (1973), de Fellini, alcançaram audiências significativas graças a “New World”: Truffaut e Kurosawa também se beneficiaram, e até Jeanne Moreau em seus devaneios autorais – “Lumière”, de 1976.
Logo que saiu da Marinha, Corman passou algum tempo perambulando por Londres e Paris, estudando literatura (Elliot, D.H. Lawrence) e circulando na Rive Gauche. Em plena Guerra Fria entre EUA e URSS, resolve importar filmes soviéticos, fazendo o que o cineasta britânico Alex Cox chamou de “ato de canibalismo cinematográfico”. Segundo Corman:
“Bem, na década de 1960 comprei os direitos americanos de vários filmes de ficção científica russos. Eles foram feitos com grandes orçamentos e tremendos efeitos especiais. Infelizmente, estavam cheios de propaganda antiamericana. Eu disse aos russos: “Vou ter que cortar a propaganda antiamericana. Não posso mostrar essas imagens na América”, e eles disseram que entenderam, sem problemas. Um dos primeiros trabalhos de Francis Coppola saindo da UCLA Film School foi cortar a propaganda russa desses filmes para mim”.
Os filmes que Corman mencionou foram lançados na União Soviética como celebração das conquistas espaciais: no dia 9 de setembro de 1959, a sonda Luna 2 subiu para o espaço, caindo na superfície lunar cinco dias depois – o primeiro veículo espacial a pousar em um outro corpo celestial. No mesmo mês, estreou em Moscou “O céu está chamando”, dirigido por Valiéri Fókin e produzida no estúdio Dovjienko, em Kiev: missão interplanetária soviética parte em direção a Marte, porém não cumpre o objetivo, em função de um desvio feito para salvar uma espaçonave americana, encalhada no asteroide Ícaro, perto do planeta vermelho. Roger Corman comprou em 1962 os direitos para exibição, e contratou Francis Ford Coppola para fazer a reedição. Uma luta de monstros foi inserida: as falas dubladas, os sinais em alfabeto cirílico apagados (NASA em vez de CCPP) e o resultado, uma versão treze minutos mais curta, lançada com novo título: “Batalha além do Sol”.
Depois dessa experiência, foram mais três longas-metragens nessa fornada, cujos títulos são autoexplicativos: “Planeta das Tempestades”, “Viagem ao Planeta Pré-histórico” e “Viagem ao Planeta das Mulheres Pré-históricas”. O canibalismo podia até multiplicar-se: de “Planeta das Tempestades” saíram dois filmes: “Viagem ao Planeta Pré-histórico” é de 1965; “Viagem ao Planeta das Mulheres Pré-históricas”, de 1968. Peter Bogdanovich (sob o nome de Derek Thomas) foi contratado por Corman para criar a segunda versão, à qual foram adicionadas cenas com a atriz Mamie Van Doren e várias outras mulheres como venusianas (usando sutiãs de concha). Esta segunda versão é essencialmente a mesma em relação à primeira, mas recontada a partir do ponto de vista das mulheres venusianas telepáticas, cujo Deus (uma grande criatura voadora semelhante a um pterossauro) é morto pelos homens da Terra. O final é um twist irônico – as mulheres venusianas encontram um novo Deus para adorar, o erodido e não-funcional robô John. Foi lançado no circuito Drive-in e em seguida na TV.
Como fiz uma centena de filmes em Hollywood e nunca perdi um centavo
O universo cormaniano dos filmes de baixo orçamento também incorporou tendências feministas, como na série faroeste que dirigiu nos anos 50: “Mulheres do Pântano” (1955), “Mulher Apache” (1955) e “A Mulher de Oklahoma” (1956), todos com protagonistas femininas autossuficientes nos principais papéis, em vez do protagonista masculino típico. Em 1961 realizou seu trabalho mais pessoal, “O Intruso”: com orçamento de 90 mil dólares, hipotecou a própria casa para contar a história de um racista virulento (William Shatner) determinado a causar problemas em uma pequena cidade do sul. Com atores locais e sem permissão para filmar, “O Intruso” recebeu críticas excelentes, mas falhou nas bilheterias. Durante as filmagens a equipe recebeu ameaças: ludibriar os fanáticos não foi uma tarefa trivial. O baixo retorno afetou Corman, que nunca mais produziu filmes com mensagens explícitas, optando pelos comentários sociais inseridos nos códigos próprios do cinema de gênero comercial.
Funcionando frequentemente com adiantamentos de distribuição, além de todos os arranjos possíveis para reduzir custos e viabilizar seus projetos, Corman conseguiu manter o pique criativo, deixando de dirigir nos anos 70 para concentrar-se na produção. As mudanças profundas e seguidas na atividade cinematográfica – novas tecnologias de exibição e produção, novas sintonias com a audiência – não esmoreceram a intensidade da sua práxis, mas conduziram o Rei dos Filmes B a um espaço marginal. Em 2010 recebeu o Oscar Honorário pela sua obra. No site da Academia consta:
“por meio de engenhosidade, energia sem limites e um amor profundo pelo cinema, Roger Corman fez mais pelos filmes do que qualquer pessoa. Sua lendária capacidade de esticar um dólar permitiu-lhe conceber e criar rapidamente filmes de época e épicos de ficção científica com orçamentos que não cobririam os custos de comida em uma sessão de estúdio moderna. Quando teve mais recursos para trabalhar, no entanto, aproveitou ao máximo: a série de filmes de terror inspirados em Edgar Allan Poe que produziu na American International Pictures (AIP) no início dos anos 1960 com Vincent Price foram saudados como joias artísticas”.
Em exibição no MUBI, um pequeno recorte da produção inicial de Roger Corman: “Um balde de sangue” (1959), uma paródia da cultura beatnik; “A loja dos horrores” (1960), feito em dois dias com o que sobrou de “Um balde de sangue”, custou 28 mil dólares e virou um cult; “A mulher vespa” (1959), sobre cosméticos, rejuvenescimento e monstro; “A besta da caverna assombrada” (1959), dirigido por Mont Hellman, ladrões de ouro às voltas com um monstro-aranha; “Demência 13”, primeiro longa de Francis Coppola, assassinatos em série no seio de uma família irlandesa: e “Sombras do Terror” (1963), dirigido por Corman e mais cinco colaboradores, realizado às pressas com material de estúdio alugado para os filmes baseados em Poe, com Boris Karloff e Jack Nicholson. Imperdíveis.