Rodantes
Liberdade é apenas um conceito e nunca um resultado
Por Fabricio Duque
A liberdade, por mais que se busque, é um conceito utópico. Um resultado impossível de encontrar em uma jornada. Uma crença ingênua de existência dissociada do humano . Nós somos seres dependentes por alimentos físicos e frágeis imunidades. Cada um sobrevive criando cavernas e prisões, metafóricas ou não. Até mesmo para ir e vir, precisamos de outro indivíduo social e seus meios de transporte. E necessitamos da moeda de troca, o dinheiro. O mundo mudou há séculos. O escambo deu lugar ao ganancioso capitalismo, exploratório e de falsa simpatia. Em “Rodantes”, do mineiro Leandro Lara, estreante na direção de um longa-metragem de ficção, o que foi dito não só se encaixa de forma simbiótica, como também é construído uma realista fábula etérea, de cotidiano em epifania, imagética e concretista. Podemos até ensaiar dizer que este filme simboliza um resumo de Brasil, interiorano, esquecido, sem lei e sedento de esperança.
Exibido no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro 2019 (mas não na competição oficial – o que gerou burburinho sobre o porquê deste não estar na mostra principal), “Rodantes” chega agora simultaneamente aos cinemas e às plataformas digitais (Claro Now, Vivo Play e Oi Play). O roteiro, de Lucas C. Barros, desenvolve-se pela estrutura de filme coral. Um que de “Babel”, de Alejandro González Iñárritu, com “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo”, de Karim Aïnouz e Marcelo Gomes, e com uma adaptação tupiniquim de Terrence Malick, bem à moda do também mineiro “Arábia”, de Affonso Uchoa e João Dumans. Aqui, três personagens ditam o que iremos assistir. Cada um se salvando (e se defendendo como pode) de seus dramas e traumas. E que se “esbarram” (sem contato e/ou envolvimento) por espaços, por acasos, pela chama do fogo e pela barragem impeditiva. Mas toda a maestria desta obra está em seu tempo narrativo: um ritmo contemplativo em uma ambiência sensorial de presente não editado, captando inclusive o tom olfativo dos lugares onde eles passam. Os três, que se aventuram em uma odisseia do recomeçar para fugir do passado, com suas histórias, ainda imprimem aqui questionamentos-feridas da problematização do Brasil, principalmente comportamental. É como se eles entrassem em um portal perdido, primitivo e preconceituoso, sofrendo as hostilidades alheias por condicionamentos estruturais. Tatiane (a atriz Caroline Abras) tenta a reinvenção, mas para isso precisa viver como antes; Odair (o ator Jonathan Well), “fruto da explosão migratória rondoniense do início dos anos 90”; e Henry (o ator Félix Smith), um imigrante negro haitiano. Machismo, homofobia, racismo e xenofobia. E tudo no meio da miséria. Um ditado popular diz que “Fome não tem moral”. Nossas personagens corroboram a máxima de que todos nós, em níveis de dificuldade, somos prostitutas do sistema. O julgamento de um encontra a hipocrisia do mesmo. Como o dinheiro do santo que “ajuda” o fugir.
“Rodantes” são aqueles que “dão carne ao santo”. “É a entidade que permite que tempos e espaços colidem”, “dizem que aquele que registra no corpo o espírito sem destino está fadado a vagar sem amor por toda a eternidade”. Essa narração inicial quer indicar qual o caminho seguiremos. Pela poesia da imagem. Por uma câmera que acompanha e que nos convida a viajar. Pela consubstanciação amalgamada de flash-fragmentos entre um existencialista quebra-cabeças misturado de passados, presentes e futuros projetados. E pelo atravessamento de um motim-rebelião em um presídio (a metáfora da prisão ainda que em liberdade). Não há pressa no ir, mas paradoxalmente é buscado o urgente chegar. Uma necessidade de incompletude. Um querer visceral pelo mais. Um Eldorado desconhecido. Tatiane, Odair e Henry são os invisíveis, os errantes, as vírgulas deslocadas da sociedade, de suas vidas desmatadas e autodestrutivas, em “apocalipse”, ligadas pelo sangue. Vital e visceral. “Rodantes” é também um filme de atores. Um filme de entrega total por catarses naturalistas. Cada um complementa o tom do outro. E os passantes, Murilo Grossi, Fernando Alves Pinto, Clara Chevaux, Rodolfo Vaz, Suzana Vieira Gonçalves, Acauã Sol, Daniel Infantini, Lívia Deschermayer, Benki Ashaninka, Angetona Dorgilus, são “personagens secundários que vão absorvendo e sendo absorvidos”, rebatendo de igual para igual, sem vaidades e moralismos.
Ainda que o final seja um tanto quanto desengonçado em seus impulsos do roteiro, “Rodantes” é uma obra mestre em conjugar milimetricamente, sem sensação sistêmica, o tempo dos acontecimentos. Nós adentramos em um road-movie pelos cantos rondonianos à espera de um Porto Velho para começar o novo. Histórias “tripartidas” que, pelas palavras do próprio diretor Leandro Lara, se traduz por “um movimento de troca de vivências que influenciam na questão formal da história a ser contada: são eles que geram os movimentos de flashback, as elipses, os cortes abruptos dos pequenos acontecimentos. Filmes que trabalham com histórias cruzadas são fonte de inspiração – como “Dolls”, de Takeshi Kitano ou “Código Desconhecido”, de Michael Haneke – mas há uma vontade profunda de respeitar o percurso dos personagens e não somente inseri-los em um dispositivo formal previamente estabelecido. É um filme à deriva, como seus personagens, que não se apóia em questões objetivas ou formalistas, mas sim na poesia que só existe naquelas histórias e imagens que não se encerram”.