Riotsville, EUA
Anos de chumbo
Por Bernardo Castro
Durante o É Tudo Verdade 2022
“O mundo colonizado é um mundo dividido em dois. A linha divisória, a fronteira, está indicada pelos quartéis e pelos postos da polícia.”, de Frantz Fanon em “Os Condenados da Terra”. O racismo estrutural e a violência policial são temas muito frequentemente debatidos, principalmente nos últimos anos. É de conhecimento da maioria a segregação racial da sociedade norte-americana, que deixou resquícios de seu vil empreendimento na contemporaneidade. Centrado na cidade cênica de Riotsville, EUA, o documentário conta a história dos movimentos civis dos anos 60, traçando uma linearidade, que evidencia as estratégias adotadas pelo governo e pelas forças militares para reprimir insurgências ao longo do país, sendo pioneiro nessa abordagem. Em ordem cronológica, é contada a história da transição das forças armadas após o relatório do comissário Kerner.
Dirigido pela vencedora do Emmy, Sierra Pettengill, “Riotsville, EUA” é outro concorrente na mostra de longas internacionais do Festival É Tudo Verdade. Dissecando o filme, pode-se dizer que consiste em um extenso uso de imagens de arquivo dos anos 60, gravações de programas televisivos, com mínima intervenção da realizadora, que se dispõe a narrar ou refletir acerca da situação nos entreatos dos excertos. Existe pouca manipulação de película e pouquíssima originalidade na execução, posto que, em grande parte, o documentário se limita a juntar peças dispersas de uma mesma época e as contextualizar ou alinhavá-las com leituras de textos em off – nessas horas, até há alguma inovação na montagem. Em resumo, “Riotsville, EUA” trata-se de uma grande colagem de arquivos. Provavelmente, com uma minutagem reduzida que valorizasse mais a narração, o resultado seria mais original e reduzindo o trabalho do exercício criativo.
Não é tão fácil acompanhar as informações, que são regurgitadas com uma celeridade ininteligível e explicam a vicissitude de acontecimentos com pouca clareza. Todavia, é necessário exaltar algumas qualidades intrínsecas a “Riotsville, EUA”. Obviamente, a obra tem o seu mérito pela coragem de desenvolver uma contranarrativa em resposta à contada pelos órgãos públicos – em dado momento, inclusive, ouve-se a mídia, em argumentum ad hominem, tentando manchar o legado de Martin Luther King. É possível intuir que a diretora decidiu se eximir da explanação constante de suas opiniões ou da intervenção direta, uma vez que não possui lugar de fala na questão e preferiu deixar os fatos falarem por si só, induzindo o espectador a tirar suas próprias conclusões acerca do que se testemunha. Outra virtude notória deste é a capacidade que apresenta de imergir quem assiste na narrativa, transportando-o para aquele tempo – é possível que a participação recorrente da voz em off romperia essa relação com o observador.
Os muitos anos de confecção, no período de 2015 até 2021, influenciaram na sua consistência. Reflexões instigantes são incitadas pela narradora e alguns paralelos são traçados, geralmente concernentes à opressão estatal, militarização, tensões raciais, o despreparo da polícia, a dicotomia entre oprimido e opressor na mesma imagem – discurso que é constantemente ratificado ao longo do documentário, dentre outros. Riotsville, cidade fictícia, que dá nome ao filme, é uma metáfora anacrônica. Dependendo do ângulo, ela é vista de uma forma diferente. Em uma primeira análise, é um sonho utópico, que mostra como o planejamento e a idealização nunca superam a imprevisibilidade da execução.
“Riotsville, EUA” é incisivo ao discernir e evidenciar a diferença gritante no tratamento da polícia em relação à protestantes negros e à protestantes brancos. A partir das informações, uma conclusão possível é de que o governo americano estava empreendendo esforços para sanar um problema temporário, investindo capital em um ataque aos sintomas e não à doença em si. A negligência do governo e a marginalização das populações afro-americanas não cessaram. Ao invés disso, dinheiro foi injetado no departamento de polícia e no exército para pôr em prática esse plano de contingência imediatista. Como consequência quase imediata, eventos catastróficos como o tiroteio de Miami acontecem e as ruas dos grandes centros urbanos, repleta de franco-atiradores e tanques, se tornam cenário de guerra.
A fala ao final é taxativa ao frisar o valor da memória. Sem conhecimento do passado, o ser humano está fadado a repetir suas ações ou de se submeter a condições exploratórias. A recordação é a única arma capaz de romper a ciclicidade da história e o único alicerce da reivindicação de espaços e direitos nesse século.