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Rio Doce

Ele não é um estranho, ele é seu irmão

Por Pedro Sales

Olhar de Cinema 2021

Rio Doce

Rio Doce” é um bairro de Olinda, em Pernambuco. A poucos quilômetros dali, está Recife, capital do estado. No filme homônimo de Fellipe Fernandes, as distâncias que se revelam não são apenas geográficas, mas também econômicas e culturais. Logo em seu longa de estreia, o diretor venceu o Prêmio Olhar de Melhor Filme no Festival Internacional de Curitiba. Em uma narrativa que se desenvolve gradualmente, o principal acerto do cineasta é a construção da dicotomia entre as cidades e as realidades distintas de seus moradores. Fernandes explora a cultura local extraindo organicidade das interações, assim, a verossimilhança está sempre em voga e é reforçada por expressões e gírias. O naturalismo dirige, portanto, o olhar para uma classe menos retratada nas telas, promovendo a representatividade de uma realidade muitas vezes esquecida.

Tiago (Okado do Canal) é um jovem morador da periferia. Trabalhando em um parque de diversões indoor – daqueles com fliperamas e outros jogos eletrônicos –, ele enfrenta dores crônicas nas costas, está no meio de um processo de separação e lida com problemas financeiros. Definitivamente, para ele nada está fácil. Às vésperas do seu aniversário de 28 anos, Tiago é encontrado por uma mulher que diz ser sua irmã. A notícia impacta os ânimos do protagonista. Além de se preocupar com dívidas e luz cortada, adiciona-se uma nova crise, a de identidade. A informação inesperada amplia os dilemas e auto-avaliações que surgem na beira dos 30 anos. Tiago deve assimilar a paternidade, essa “nova família” e levanta dúvidas do porquê de sua mãe nunca ter lhe contado a verdade.

O diretor Fellipe Fernandes emprega em “Rio Doce” uma clara dialética entre os espaços. Recife, a cidade onde as irmãs de Tiago, Laura (Nash Laila) e Catarina (Amanda Gabriel), moram se difere bastante da periferia de Olinda. A diferença se manifesta desde a paisagem até o poder econômico. No centro, as ruas estão ironicamente despovoadas e sempre em obras. Por outro lado, na região periférica, a receptividade da população e sua integração é bastante clara. As pessoas se conhecem, se cumprimentam e estão fisicamente próximas. As barreiras que separam os dois espaços se tornam perceptíveis na cena em que Tiago é convidado a conhecer suas irmãs. O olhar direcionado a ele carrega um preconceito que pode ser racial, mas é sobretudo geográfico. Não é por acaso que a pessoa que o protagonista mais se sente próximo é a babá das crianças, que também mora nos subúrbios. Os modos de Tiago, quase sempre comedidos, são causadores de uma preocupação latente de Catarina em relação ao pertencimento familiar. É como se ela questionasse: “Como alguém de uma ‘classe’ inferior pode dividir o mesmo sangue que eu?”. As gírias e a referência a colegas como Júnior Mala e Caio Capeta contribuem para a ojeriza nutrida diante do novo irmão.

O contraponto centro-periferia funciona bem pela propriedade do olhar diante da cultura local. O cineasta, assim como o protagonista, foi criado na região. Dessa forma, a construção narrativa parte de uma visão interna do bairro. Em razão disso, o filme consegue com clareza situar o espectador dentro desse universo. O uso de gírias e expressões e os diálogos mais descontraídos criam, por exemplo, o interesse e a verossimilhança. A direção mais naturalista dos atores também enriquece essa carga real que, por vezes, remete ao documental. Em certos momentos, como o uso do registro, sejam fotos ou vídeos, essa noção fica ainda mais clara. Tais intervenções se aproximam da docuficção, mas não mantém essa pegada. Apesar da cultura de Rio Doce e de Olinda se materializarem facilmente em tela, sinto que a cultura de rua, o break e o hip hop pudessem ter tido uma importância um pouco maior. O longa deixa a entender que a dança e o rap estiveram presentes na vida de Tiago – inclusive em um dos vídeos de arquivo –, porém parece que ficou tudo no passado, há uma pequena cena em que ele dança com os garotos na quadra. A paixão é demonstrada majoritariamente pelos diálogos.

A inserção destes elementos foi uma parceria entre o diretor e o ator Okado do Canal na construção do personagem. Fernandes diz, em entrevista ao canal do YouTube do Olhar de Cinema, que “uma das preocupações era criar personagens e espaços que se estendessem para além da tela”. De fato isso acontece, sobretudo com o protagonista. Mesmo com o uso das fotos de Okado mais novo e esse caráter de docuficção, o diretor assegura que não há nada de autobiográfico. “Nesse processo de preparação do filme, da pré-produção de fato, a gente foi reconstruindo junto o Tiago. Toda essa questão do hip hop e da arte de rua veio junto do Okado. Foi ele que trouxe isso para o personagem”, conta o cineasta. O artista, além de ator, é rapper e b-boy, logo esses elementos dizem respeito à sua própria realidade.

Apesar dos acertos de “Rio Doce“, a obra não tensiona dramaticamente, a narrativa é esvaziada de grandes conflitos. Tudo que se desenvolve é sempre um quase algo. No almoço em família, o que se depreende é uma quase discussão. Antes de sua festa de aniversário, o diálogo com a mãe antecipa um quase surto, uma quase quebra. Fernandes não se arrisca tanto nesses momentos, ele opta por um confronto contido. De um lado, isso evita que o filme caia em artificialismos e uma quebra da unidade estilística que prioriza performances naturalistas. Do outro, fica aquela sensação de que falta dramaticidade e impacto nos conflitos. De qualquer forma, a obra se destaca em sua abordagem de uma realidade quase sempre invisibilizada. O discurso acerca da paternidade foge do determinismo e demonstra que o presente não precisa seguir o passado. Por fim, Fellipe Fernandes, que antes foi assistente de direção de Kleber Mendonça Filho em “Aquarius” (2016) e “Bacurau” (2019), demonstra segurança na direção e um futuro promissor.

3 Nota do Crítico 5 1

Conteúdo Adicional

  • não faz sentido naturalizar narrativas que “tensionam dramaticamente” como se elas fossem um padrao a ser seguido… é absurdo qualificar como “não acerto” (“Apesar dos acertos…”) o fato de a narrativa se apresentar “esvaziada de grandes conflitos” … como se tê-los (e eles não serem “contidos”) fosse sinônimo de boa narrativa… a reificação dessa ridícula “regra” de manual de roteiro faz com que narratividades mais complexas, sutis e menos óbvias sequer sejam percebidas como narrativa, o que é absurdo! “faltar dramaticitidade e impacto nos conflitos” pode ser um vetor extremamente positivo de uma obra cinematográfica, quando se dá dois passos para além da cartilha escolar de roteiros que vc parece seguir…

    • Bom, Roberto. Concordo em partes com sua afirmação, de fato esperar que todas as narrativas sigam “grandes conflitos” e “dramaticidade” é um pouco reducionista e iguala todos os filmes a essa “regra”, além de desconsiderar uma construção mais “sutil, complexa e menos óbvia” que você argumenta. No entanto, eu acredito que “Rio Doce”, filme do qual eu gostei, se conectaria melhor comigo, caso optasse por um drama mais carregado, sabe. De qualquer forma, agradeço pela interação e suas pontuações acerca de diferentes narrativas.

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