O estigma, aqui defendido
Por Vitor Velloso
Durante a Mostra CineOP 2019
Em um momento político tão adverso, onde o desmonte cultural já é uma realidade e é difícil manter-se otimista, temos Edgard Navarro como homenageado da Mostra de Ouro Preto, uma bela e visceral resposta à tudo isso. A contrapartida na programação do Cine OP é “Rio da Dúvida” (2018), que vai tratar de uma questão necessária a partir de um ponto de vista bastante dúbio, o documentário busca uma ótica diferente à famosa viagem de Marechal Rondon, o problema está exatamente na forma como este ponto de vista é construído, onde Joel Pizzini desenha uma reflexão acerca das atitudes do militar e levanta a questão sobre sua participação histórica na vida dos índios. Infelizmente, há uma certa compreensão da jornada como uma determinada injustiça histórica. E este argumento ele se vulgariza pela própria História, pois o processo de violentar a cultura indígena não deve ser tão negligenciado perante fatos tão contundentes.
Formalmente Pizzini decide tomar um caminho pouco pragmático mas bastante comum na cinematografia contemporânea, encenar alguns eventos históricos e assim permitir uma visualização e uma remontagem para o público. A linguagem assume essa concretização, mas nunca se compreende enquanto documento, o que é minimamente honesto, porém a encenação proposta aqui funciona quase como uma sketch, sendo alvo das críticas generalizadas das pessoas no fim da sessão, pois, de fato, a misancene aplicada não consegue dar credibilidade nem a narrativa, nem ao filme, já que esse processo é realizado com atores em interpretações bastante duvidosas e com narrações (majoritariamente em inglês) que buscam um apoio na ficção sem construir um olhar crítico da própria forma.
Além disso, a estrutura do longa acaba se tornando bastante confusa, quando a montagem salta de um lado ao outro sem tratar do acompanhamento do público, todos na sala se perdem naquilo que está sendo projetado. Em um determinado momento escutei pessoas comentando: “Não estou entendendo nada”. É tão compreensível a fala do espectador que em diversas situações é possível acreditar em uma linha lógica, que é quebrada logo em seguida, tornando a experiência frustrante e vazia por excelência. Não trata-se de (des)méritos formais ou “narrativos”, mas de uma visão caótica de um fato que deve ser tratado com um cuidado maior.
Um dos momentos de curiosidade maior, que deve ser tratado no texto, pois garantiu sua exibição aqui na Mostra, é seu trabalho com a imagem de arquivo. Uma vasta confecção de imagens que nos ajuda a compreender melhor o território que foi explorado e as dimensões onde tal trajetória de salvador branco aconteceram. Para acompanhar as imagens, por vezes escutamos o ator que interpreta Roosevelt, ou especialistas, brancos, para falar sobre a história que diz respeito diretamente aos índios. Essa união de fatores acaba levando o filme à um status de falácia tão burocrático e duvidoso, que a desistência do longa é justa, não o abandono à sala de cinema, mas de inclinar-se na cadeira e apenas esperar acabar. A quantidade de pessoas dormindo foi um reflexo disso. E nesta questão entraremos em outro ponto, o ritmo.
A consequência direta de tudo dito acima, com uma montagem que estrutura suas imagens de maneira pouco dialética, e didática, é o tédio generalizado, pois com a progressão do documentário, vamos percebendo que as intenções do diretor soam mais formais que históricas, o que explica algumas questões. Mas ainda na forma, há uma possibilidade de discussão, pois sua encenação tenta ser tão anacrônica que demoramos alguns segundos para acompanhar o pensamento. Dentro desta breve reflexão temporal, temos algumas ideias que são interessantes mas soam como desperdício, exemplo, o índio que se encontra com Marechal Rondon e comenta que seu pai ganhou uma medalha de presente do militar, porém vemos isso na encenação do próprio índio contando essa história, interpretando seu pai e o Marechal quase que presente em dois momentos, como ficção e factualidade.
Apesar disso, a proposta acaba se inclinando à um ode exacerbado da imagem do próprio Marechal, cedendo espaço ao índio nesta iconografia do filme, e não o contrário, por isso é tão dúbio o que vemos no ecrã. E assim, não é possível acusar a produção dessa conivência à uma figura tão problemática, mas podemos gerar um debate do impacto desnecessário que ele irá causar.