Curta Paranagua 2024

Rainha de Copas

Rainha de copas

A moral do ser

Por Vitor Velloso

 

 

Em uma situação política onde se tenta dizimar a cultura e censurar livros, é fácil prever reações pouco simpáticas a história de “Rainha de Copas”. Claramente trata-se de uma história com uma moral complexa, quiçá duvidosa, mas é bom lembrar os odiosos de plantão, trata-se de uma ficção, logo, acalmar os ânimos não é sinônimo de cumplicidade e sim de neurônios funcionais.

Dirigido por May el-Toukhy, “Rainha de Copas” chega aos cinemas brasileiros em uma turbulência complicada, o drama que conta com um caso amoroso entre a madrasta, Anne (Trine Dyrholm) e o enteado, Gustav (Gustav Lindh), opta por um caminho pouco pragmático na abordagem narrativa, porém eficiente; um olhar cético, frio e rígido diante dessa realidade, como quem não julga, mas observa. Tal escolha dá um tom um tanto mórbido ao romance que vai sendo construído paralelo ao drama da protagonista, de tal maneira que o desconforto diante da situação que ela se encontra, é crescente com a progressão da narrativa. Desta maneira, a forma que May apresenta em seu longa, é contida, porém consciente, pois compreende que seu objetivo só pode ser cumprido com o longo, e lento, desenvolvimento de personagem que propõe ao público.

O adjetivo lento não foi utilizado de maneira pejorativa, pelo contrário, por tratar-se de nuances árduas e espinhosa, os atores e a trama necessitam um longo período para que as sugestões estejam presentes. Inclinando o projeto à psique de seus objetos, diversas tendências não são esclarecidas, pois a complexidade dos sentimentos não precisa ser reduzida à uma exposição banal na pele dos atores, com isso, é fácil ser enganado por algumas atitudes específicas. Essa concepção brutal da relação humana é fruto de um olhar característico da cultura cinematográfica nórdica, ainda que seja uma questão universal. Aliado à expressão local, a violência que o romance proporciona pode incomodar o público, já que não trata-se de uma relação amorosa “normal” entre enteado e madrasta, mas de uma advogada do direito da criança e do adolescente, com um jovem problemático.

Enquanto tentamos decifrar caminhos possíveis para os dois, uma família desmorona na tela, violência doméstica passa a ser uma das temáticas abordadas por May e o estilo “slow burn”, apelidado pelos norte-americanos, que significa uma abordagem lenta mas que “queima” aos poucos, acaba transformando-se em um poderoso melodrama que perde força em seu ato final, não por um ato de exposição, mas o contrário, a diretora recua nas respostas a ponto de enterrar a complexidade em um limbo tão volátil que a faz perder as rédeas da narrativa, uma decisão arriscada, mas que demonstra um vigor dramático pouco usual, que por si só é uma atitude respeitável, visto que a maioria optaria por vislumbrar o seguro.

Contudo, ainda que a obra demonstre sua força durante a maior parte do tempo e deixe o público apreensivo com o desenvolvimento da história, trata-se de uma obra realizada para um nicho específico do cinema. Retorno a comentar sobre o eixo de cinemas das áreas nobres da cidade que são capazes de se dar ao luxo de pôr em cartaz tal tipo de filme, que acaba restringindo o número de pessoas que terá acesso ao longa, mas que é a única maneira de viabilizar uma distribuição do mesmo, mas que por tal motivo conduz o público à um estilo particular de projetos que ele irá assistir no cinema, pois ele foi condicionado a apreciar os longas europeus de discussão moral e psicológica.

“Rainha de Copas” não é original em sua temática, mas consegue se impor formalmente através de sua abordagem brutal de um caso trágico que se desenvolve de maneira violenta e viril. Todos os louros devem ser dados à diretora e aos atores, além da fotografia que consegue manter o ar estéril com uma crueldade dramática louvável.

Apesar da resistência ao tema, acredito que o público que assistir ao filme terá uma experiência peculiar, pois as camadas são muitas e as conexões pessoais ainda mais. E o importante de tudo isso, raramente as opiniões serão homogêneas e o debate pós sessão será profícuo.

3 Nota do Crítico 5 1

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