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Quo Vadis, Aida?

Para onde vais, Aida?

Por João Lanari Bo

Festival de Veneza 2020

Quo Vadis, Aida?

Quo vadis? A expressão é do latim, a língua morta que jaz no subterrâneo do nosso inconsciente linguístico: informa a wikipedia, arauto do saber digital, que a expressão vem de um relato do evangelho apócrifo conhecido como “Atos de Pedro”, no qual, ao fugir de uma provável crucificação em Roma, São Pedro encontra Jesus ressuscitado e pergunta: “Quo vadis?” E Jesus responde: Romam vado iterum crucifigi (“Vou a Roma para ser crucificado de novo”). Pedro desistiu da fuga, voltou a Roma e foi crucificado de cabeça para baixo. “Quo vadis” ressoa também no mundo do cinema: baseado no livro homônimo publicado na Polônia em 1895, seis versões foram produzidas – entre elas a mais conhecida, de 1951, com Deborah Kerr e Robert Taylor, que ganhou o Oscar: cristãos sofrendo sob leões famintos e a piromania de Nero.

Quo vadis, Aida?”, o filme de Jasmila Zbanic, corajosa cineasta da Bósnia, atualiza a pergunta para o trágico passado próximo da enlouquecida guerra civil que atingiu os territórios da antiga Iugoslávia, na primeira metade dos anos 90. Atualizar no sentido mais radical possível: seu filme parece inspirar-se num daqueles relatos escabrosos do Antigo Testamento da Bíblia, em que cidades e populações foram dizimadas em nome da pureza étnica-religiosa. O massacre contemporâneo entrou para a História como genocídio de Srebrenica, o pior no Ocidente depois da 2ª Guerra: aconteceu entre 11 a 25 de julho de 1995, quando 8 mil e 373 bósnios muçulmanos, de adolescentes a idosos, foram executados ou desapareceram, por milicianos travestidos de forças militares compostas por cidadãos bósnios de origem sérvia, apoiados pela Sérvia.

Srebrenica é uma pequena cidade montanhosa com pontes romanas e arquitetura bizantina, no extremo leste da Bósnia: suas principais atividades econômicas são (ou eram) mineração de sal e turismo, através de balneários nas proximidades – um deles, o hotel Vilina Vlas, foi sede de comandos milicianos e cenário de pelo menos 200 estupros e assassinatos de mulheres muçulmanas, em 1992 (depois do conflito, voltou a funcionar). “Quo vadis, Aida?” organiza sua narrativa a partir do que vê a intérprete Aida, a serviço das forças de paz da ONU em Srebrenica: a cidade foi declarada em abril de 1993 “área livre de qualquer ataque armado ou qualquer outro ato hostil”, sob a proteção de uma pequena e frágil unidade de militares holandeses, os chefes de Aida.

As tropas comandadas pelo general Ratko Mladic não se deixaram impressionar com essa normativa internacional e perpetraram o massacre, nas duas semanas de julho de 1995. O equilíbrio entre o particular ficcional da família de Aida e o coletivo da tragédia é um dos pontos fortes do filme: poucas vezes o letreiro inicial “baseado em fatos reais e personagens ficcionais” foi tão adequado. O dilema moral de Aida – salvar seus próximos, marido e dois filhos, utilizando o crachá de funcionária internacional e apelando para exceções duvidosas, ou resignar-se diante do drama coletivo que se anunciava? – instala a referência bíblica no âmago da personagem. Em um mundo onde os limites de convivência humana foram ignorados ou ostensivamente abolidos, qual o sentido do dilema? Para onde vais, Aida?

Ratko Mladic é dos personagens mais sinistros dos anais da violência humana. Conseguiu ficar foragido por quinze anos depois que o conflito na Bósnia se encerrou por meio de acordo multilateral de paz em fins de 1995: Sérvia e Estados Unidos chegaram a oferecer cinco milhões de euros por informações que levassem à captura do general, afinal detido em 2011. Acabou condenado a prisão perpétua pelo Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia. Em “Quo vadis, Aida?”, seu personagem performa uma das melhores interpretações do filme, ao lado do hesitante coronel holandês e, claro, de Aida.

Depois dessa era de catástrofes, a Bósnia e Herzegovina reformatou-se politicamente em uma federação com duas entidades politicamente autônomas, a Federação da Bósnia e Herzegovina e a República Sérvia (que não deve ser confundida com a Sérvia propriamente dita). Até hoje forças da ONU permanecem no país, geograficamente dividido, para garantir o cumprimento do acordo de 1995. Segundo estimativas, 45% da população são muçulmanos, 36% ortodoxos sérvios e 15% católicos: descontada a margem estatística de erro, essa é a fratura religiosa que assombra a Bósnia.

Em 2018, jornalista do The Guardian visitou a região e constatou o seguinte:

Os comentários do TripAdvisor sobre o hotel Vilina Vlas são mistos. Apenas alguns mencionam o cenário de estupros que ele já foi – e se você não fala francês ou alemão, nem vai perceber. O resto é uma mistura de reclamações mundanas sobre quartos sujos e homenagens entusiásticas à floresta e suas fontes termais naturais.

5 Nota do Crítico 5 1

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