Mostra LC Barreto de Curtas 2024

Queer

A projeção obsessiva de uma paixão inventada

Por Fabricio Duque

Festival de Veneza 2024

Queer

O amor é um sentimento universal. E a paixão a mais genuína das sensações. Mas por serem instintos tão abstratos, subjetivos, infinitos e difíceis de entendimento, o cinema precisou então personificar formas, categorias e definições indicativas, gerando assim a ideia padrão de como se ama. Essa metafísica invisível do se apaixonar ganhou a concretude da racionalidade. Não, não é nem um pouco simples abordar o tema do amor, tampouco da paixão (esta que vive no campo similar a da loucura), e mais complexo ainda tentar traduzir suas consequências físicas (quem nunca sentiu efeitos metabólicos no próprio corpo?), fisiológicas (quem nunca sentiu aquela dor na barriga de ansiedade e/ou desejo?) e psicológicas (quem nunca sentiu perder totalmente o foco e o controle da própria mente?) no comportamento mundano extra-sentimental de quem é “acometido” por esse “mal”.  

Quando por exemplo o jazzista Chet Baker canta “I Fall in Love Too Easily” e/ou Los Hermanos traz “O Último Romance”, e/ou quando a frase “É o outro que nos escolhe” é dita no roteiro do filme “O Clube dos Corações Partidos”, e/ou quando a literatura pontua com “Amor é um fogo que arde sem se ver”, conseguimos então compreender que o cinema do cineasta italiano, Luca Guadagnino (quem em 2017 apresentou sua obra-prima “Me Chame Pelo Seu Nome”) é na verdade pautado na estético do amor imagem. De que esse amor está nos detalhes: no tipo de cabelo, em um rosto simétrico. Até o escritor português José Saramago tentou abordar isso em “Ensaio Sobre a Cegueira” com o argumento dos “olhos fechados”. Até porque o ser humano é um indivíduo social e esse seu amar é na maioria das vezes para mostrar ao outro o objeto-troféu que se ganhou. Sim, mas como julgar a intensidade das paixões? Como mensurar se é pouco ou é demais? Se é obsessão ou carinho excessivo? 

Em seu mais recente filme, “Queer”, exibido na mostra competitiva do Festival de Veneza 2024, Luca imprime sua qualidade máxima, que é a de construir a visibilidade imagética da metafísica desse abstrato chamado amor, desencadeando assim inúmeros gatilhos (quem nunca sofreu e/ou foi irracional que “atire a primeira pedra”). O longa-metragem em questão aqui é uma terapia do Devir particular de cada um (de amor-turista), tudo apresentado em uma narrativa de capítulos (algo como um épico existencial de uma paixão nunca esquecida), até porque “Queer” é baseado no livro homônimo de William S. Burroughs, um dos nome mais conhecidos da geração beat. Há quem diga, usando aleatoriamente estudos soltos e ouvidos, de que só se ama uma vez na vida. Não há outra chance, só reencarnando mesmo (para as pessoas que acreditam que há eternidade). 

Assim, “Queer” inicia-se pelos detalhes e efeitos vividos dessa geração beatnick: cigarro, bebida, lagarta, a cutícula suja da unha, livro, jazz, armas, fotos e máquina de escrever. E traz a assinatura de Luca, um que à moda de Woody Allen: a presença da mesma fonte e cor de “Me Chame Pelo Seu Nome”. O primeiro capítulo é a apresentação: a normalização mais encenada da zona de conforto do universo underground de “inferninhos” (no México), em diálogos diretos, menos naturalistas, mais artificiais, mais vulgares para “lacração” (alguns extremamente preconceituosos e xenófobos, como por exemplo, “brasileiro que rouba uma máquina de escrever”), com muito teor sexual e fora do tom. A fotografia, saturada ao brilho quase esbranquiçada, e depois noturna, que encontra a atmosfera de um noir modernizado (por exemplo, pela inclusão da música “Come as You are”, de Nirvana, entre cortes rápidos, elipses de ações próximas e interferências/frequências sensoriais/etéreas, busca ter um aura de sonho vívido. Talvez a de uma projeção real no campo da imaginação (em que o amadorismo narrativo é a pitada orgânica para contar a história), neste que reside quase cem por cento do desejo. Nessa parte do filme, nada é sutil e sempre didático no discurso. Tudo precisa ser abrupto, quem sabe para assim condensar a tradução desse meio fulgaz, líquido, casual e imediatista da procura pelo sexo, em que “bichas” e “queer” (antes um termo depreciativo, mas agora foi apropriado pelos gays como uma palavra de luta e resistência). Sim, isso tudo faz sentido no final. 

O segundo capítulo é o naturalismo do relacionamento em infinitas camadas desdobradas (ainda que “conserve” as piadas preconceituosas de “quinta série”). Pois é, é impossível listá-las e contabilizadas, visto que cada uma ganha variantes pessoais e co-dependentes de inúmeros fatores externos e internos. Como disse, não é nem um pouco fácil traduzir esses sentimentos. Dessa forma, novas emoções são geradas. A obsessão do objeto de desejo, a incompreensão se é ou não correspondido, a vulnerabilidade imatura, a potencialização do “drama queen”. Nessa parte, nós espectadores adentramos em novos gatilhos e novas percepções. Uma delas é a de que nossa zona de conforto é flertar sempre com pessoas possíveis. As que são “muita areia para o nosso caminhão” causam confusão nessa nossa idealização dessa paixão perfeita e para sempre. “Queer” não quer ser uma obra puritana, muito pelo contrário, é um filme com tesão-testosterona. Mostra nudez e sexo quase explícito. Essa sensação de que estamos assistindo a imaginação da personagem principal, interpretado pelo ator “007″ Daniel Craig (que, não sei se vocês lembram, mas já flertou com o tema em “Flashbacks of a Fool”, de Baillie Walsh) venerando, fascinado” e intrigado, seu “sugar baby” (o ator americano Joseph Andrew Starkey, de “Para Simon, Com Amor”). 

“Queer” é um jogo de sedução. Assim como qualquer começo de se conquistar o que se quer, o “escorregadio” “boy magia”, e o eterno querer de ser parte do outro. Entre “paradas” no bar para ouvir “causos de pegação” dos outros “amigos”, entre desilusões-desconfortos, entre sessão de cinema (com filme francês na tela). É a construção do desejo por um surrealismo mais real. Por uma suspensão do tempo do agora, como se fosse um fluxo do pensamento. Da euforia ao costume. Essa calma consequente estimula a vivência da relação “independente” (e não mais a necessidade de posse-aprisionamento). E novas buscas-estudos, como por exemplo, a sensibilidade telepática, vulgo Ayahuasca, que é o tema do terceiro capítulo. “Queer” também faz alusão metafórica do amor deles com a bebida “Alaska”, que é “quente por fora e frio por dentro”. “Não sou bicha, estou desencarnado”, diz-se. Mas a mensagem dessa noir e estranha fábula queer é que nunca esqueceremos esse amor, que nunca saberemos lidar com essa paixão. 

Sim, “Queer” é uma experiência. Uma viagem psicodélica. Que se fragmenta para se explicar no final, que evoca “até os ossos” Luis Buñuel e Apichatpong Weerasethakul. Na parte da floresta, Luca cria uma das mais poéticas e etéreas cenas de tradução metafísica do que um desejo faz no outro, amalgamando-se na energia vital do próprio sentido do existir. E assim, ao relembrar, escondendo ou aumentando pontos, entendemos que “Queer” é uma ode à imaginação do amor eterno, aquele mais platônico, que é muito mais feliz na ideia do que na realidade. Talvez esse seja mesmo o mais verdadeira paixão, que motiva toda uma vida. Cazuza já cantou a “pedras”: “Eu quero a sorte de um amor tranquilo” e que o querermos mesmo é “Um amor inventado”. 

4 Nota do Crítico 5 1

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