Quando Vira a Esquina
Territórios e contextos
Por Vitor Velloso
Assistido durante o Festival do Rio 2024
“Quando Vira a Esquina” é um documentário que se propõe a expor depoimentos e entrevistas de mulheres que trabalham como profissionais do sexo na Vila Mimosa (RJ), sem nenhum tipo de julgamento ou valoração moral em torno das histórias contadas pelas mulheres. Assim, o diretor Chris Alcazar constrói um retrato das histórias sem uma menção de progressão temporal, apenas as descrições de suas trajetórias, decisões e individualidades. A decisão é interessante para apresentar uma estrutura cadenciada pelas próprias protagonistas, em seus respectivos blocos, com a força de sua oralidade, com imagens de apoio e contextualização que vão desde seu cotidiano em casa até o trabalho delas na noite.
O longa tem muita facilidade em focar em seu objeto de forma imediata, saltando para a próxima personagem após o fim da anterior, criando um ritmo que não se fragiliza ao longo da obra. Pelo contrário, a diversidade das histórias cria um retrato múltiplo das profissionais, permitindo ao espectador reconhecer as similaridades e as distinções. Contudo, “Quando Vira a Esquina” tem dificuldade em apresentar a Vila Mimosa enquanto personagem nesse recorte apresentado no filme, reduzindo parte das discussões sociais e da própria narrativa das protagonistas, que referem-se a Vila Mimosa com frequência, mas o espectador nunca tem pleno acesso ao território, seja enquanto imagem urbana ou social. Não por acaso, o projeto parece constantemente recortado, como que negligenciando esse espaço de sua representação, conscientemente ou não. A principal consequência é a retirada de identidade da localização e uma separação entre contexto e personagem, formando uma estrutura que nem sempre consegue ser eficaz em debater, ou oferecer ferramentas para o debate, o que as personagens propõe de discussão. Assim, o documentário enfrenta uma certa incompatibilidade com esse recorte espacial que é delimitado desde os primeiros minutos, reforçando sua predileção por suas personagens e histórias, que apesar de deterem todo o poder da obra, encontram-se em um território de poucas imagens dessa paisagem.
Essa concentração nos discursos, gera uma camada importante para a obra, as semelhanças encontradas nas particularidades, especialmente nas palavras em comum usadas pelas protagonistas, como “liberdade”. Não é por acaso, pois trata-se de uma construção social, uma estrutura de opressões femininas, com diferentes formas de agressão. E claro, trata-se de um problema cultural, estrutural, que não poderia ser debatido em toda sua complexidade, mas que poderia encontrar uma representação social no recorte espacial proposto pela obra. Esse foco nas personagens até é capaz de criar uma dinâmica ao longo da projeção, através da alternância e de suas diferenças. Além disso, oferece um recurso para pensar a própria noção de liberdade, tão citada durante o filme, quando algumas mulheres optam por não mostrar o rosto para preservar seus filhos de qualquer constrangimento social. Apesar da atitude ser compreensível, demonstra que não há liberdade total ou incondicional para os personagens envolvidos, como os filhos, que são centrais no discurso de todas as protagonistas, sem exceção.
Nesse sentido, “Quando Vira a Esquina” funciona bem como um retrato sociológico dessa situação que as profissionais se colocam em prol dos filhos, de sua liberdade, seja ela financeira ou pessoal, contra uma certa moralidade que permanece na sociedade brasileira, em torno das mulheres e desses trabalhos. Por essa razão, o documentário tem uma força inegável, pois sua capacidade de mobilizar os sentimentos do espectador na compreensão das situações de suas personagens é eficaz, aliás, é possível se emocionar ou torcer a cara em pesar com alguns dos depoimentos presentes no filme. Porém, a falta de uma contextualização geográfica e social desse espaço que está recortado durante toda a obra, realmente cria um vácuo na construção, que é sentido especialmente na reta final de projeção.