Privacidade Hackeada
O Mundo que Muda Você
Por Jorge Cruz
Logo no início de “Privacidade Hackeada” uma das grandes lendas urbanas a ponto de se tornar realidade é desmistificada: a de que os aparelhos de celular “ouvem” nossas conversas e nos sugestionam conteúdos baseado nessa invasão de privacidade. A explicação para essa “coincidência provocada” e a de que a tecnologia é capaz de antecipar nossos comportamentos. Baseado nisso, as campanhas eleitorais ao redor do mundo passaram a exercer um marketing muito mais agressivo e direcionado nas redes sociais. Alguém simpático às políticas de esquerda, por exemplo, esbarra em conteúdos de nacionalistas ou neoliberais quase como por acidente. Quando os resultados das urnas chegam, surpresa e incompreensão de quase metade dos cidadãos de algum país são alguns dos sentimentos identificados: da ascensão de Donald Trump e Jair Bolsonaro à Presidência de seus país, até o Brexit.
O documentário dirigido por Karim Amer e Jehane Noujaim não segue o caminho do denuncismo. Apesar de boa parte das gravações terem ocorrido no período em que o Congresso dos Estados Unidos apurava as responsabilidades do Facebook e da Cambridge Analytica pelo disparo de mensagens do comitê de campanha de Trump, boa parte com conteúdo falso, a forma como o longa-metragem é montado parece até exagerar no formato expositivo. Todavia, em mais de uma situação, entrevistados lembram que os bancos de dados, a princípio apolíticos mas utilizados mais para deturpar visões e entendimentos da sociedade do que para promover um debate em busca do senso comum, continuarão em voga por muitos anos.
A ferida é mexida, mas até a página dois. “Privacidade Hackeada” traz minúcias sobre o que, no frigir dos ovos, são águas passadas. Ao invés de trazer à baila novas possibilidades sobre a concessão espontânea de dados pelos usuários de internet, reitera as maneiras como foram praticadas nos últimos anos. Por isso, mesmo que a produção seja de importância fundamental para que seja concatenada a visão sobre a História recente do mundo, a experiência de assisti-lo é, por vezes, a ampliação de uma reportagem com tom mais crítico sobre o tema. A repetição dessas informações vão maculando rapidamente o filme de envelhecimento precoce.
Para os menos interessados em pesquisar sobre a maneira como a Cambridge Analytica mudou os rumos do Ocidente, depoimentos mais diretos podem criar essa vontade. Todavia, quando precisa descer alguns degraus e falar para quem é totalmente não-iniciado, peca na omissão. Em determinado momento, por exemplo, é dito diretamente como Steve Bannon anseia uma destruição do mundo como o conhecemos, fomentando uma guerra cultural sem precedentes. Falta, para o espectador-médio, um contexto e caracterização desse expoente anti-globalista (para usar um termo cunhado por ele e seus asseclas).
Há, contudo, algo em “Privacidade Hackeada” que o molda ao gosto do mercado consumidor de documentários, principalmente os baseados em listas de premiações. David Carroll, por exemplo, que movimentou as discussões sobre a ética das grandes corporações de tecnologia ao mover um processo contra o Facebook para ter seu direito ao sigilo de dados respeitado, é colocado como um personagem-objeto. Seu ímpeto defensor da regulamentação e conscientização acerca das redes sociais é deixado de lado para que ele se torne um exemplo de usuário. Algo que “Ícaro“, vencedor do Oscar de melhor documentário em 2018, por exemplo, faz com Bryan Fogel, que também dirige a obra.
Essa imprevisibilidade causada por, supostamente, estarmos acompanhando o desenrolar dos fatos em tempo real, dura pouco. O longa-metragem sabe exatamente onde quer chegar. Seus subterfúgios para criar essas narrativas palatáveis, porém, faz com que oportunidades sejam perdidas. A grande figura do filme é Brittany Kaiser. Uma jovem que fazia campanha política para o Partido Democrata de maneira espontânea, se tornou lobista de direitos humanos e dá uma guinada em sua trajetória profissional – com flagrantes reflexos na vida pessoal – para uma das principais diretoras da Cambridge Analytica, coordenando diretamente a campanha de Trump. Em sua piscina de borda infinita ela, aos poucos, vai se revelando arrependida e consciente do que a levou a se tornar algo que nunca pensava ser.
Porém, o longa-metragem evita se debruçar sobre essa personagem tão curiosa quanto comunicativa e franca em suas intervenções. Outro caminho pouco explorado perto logo ao fim, quando um antigo investidor fala como o trabalho da corporação, na verdade, mistura as práticas de marketing com as de cassinos.
No fim, “Privacidade Hackeada” é bem menos potente do que seu aterrorizante objeto de estudo. Mostrando como as redes sociais, tão inocentes no passado que levou o Vale do Silício a apostar no Second Life como grande produto do século XXI, se transformou em uma mistura de prisão com provocadores de grandes males da Humanidade. Sua mensagem sobre uma necessária “desconectividade” se dá mais por dedução do que por construção narrativa a partir dos elementos apresentados. Por isso, ao evitar ser bem mais afrontoso, acaba se mostrando apenas interessante – como se ali não estivesse um espelho do apocalipse de nossa existência.