Prazer, Camaradas
Revolução Social e Revolução Sexual
Por João Lanari Bo
“Prazer, Camaradas”, escrita e dirigida por José Filipe Costa em 2020, entrega o que o título promete: uma cândida e prazerosa convivência audiovisual por 1 hora e 45 minutos; uma imersão na nostalgia do passado utópico da Revolução dos Cravos, em 1974, temperada de farpas irônicas das castrações sexuais pós-revolucionárias. Para dar uma ideia: como se fosse uma crônica, pequenas alusões são interseccionadas, de modo a produzir associações inesperadas. Depois da sequência que mostra um grupo de mulheres idosas lavando roupa e conversando sobre como perderam a virgindade, aparece a imagem de um lençol branco ao vento: o lençol tinge-se de vermelho, encarna-se digitalmente de sangue, menção ao rompimento do hímen e também ao vermelho da Revolução – recorde-se a bandeira vermelha de “Encouraçado Potemkin”, de Sergei Eisenstein, único momento em que uma cor emerge na superfície da tela. Com essa solução, “Prazer, Camaradas” produziu uma imagem-cristal: uma imagem que é resultado de uma contração, imagem atual e imagem virtual, até o ponto de indiscernibilidade entre elas, simultaneamente presente e passado; luta do proletariado e luta feminista, sob o signo do humor, alegremente invertendo o sentido opressor a que eram submetidas muitas jovens recém-casadas.
Mulheres idosas: o filme de Filipe Costa dá voz a essas personagens logo de cara, quando um comboio de antigos ativistas e simpatizantes estrangeiros da Revolução dos Cravos chega numa kombi para visitar a cooperativa em que atuaram, projeto que envolvia educação popular e emancipação política de camponeses do local. “De fato, estavam uma série de coisas na linha de interesse dessas pessoas que não se concretizaram e se chegaram, foram breves”, afirmou o diretor: de fato, o mundo girou e a idealização da utopia revolucionária ficou para trás, confrontada pela dureza dos dados concretos da realidade. E mais: depreende-se do filme que tanto o processo revolucionário como o início da normalização democrática pós-1974, omitiram ou desprezaram questões relacionadas a sexo, como prazer feminino e igualdade em termos de orientação sexual e gênero. A estratégia de “Prazer, Camaradas” é jogar com essas temporalidades, superpondo-as entre filmagens contemporâneas e remissões ao passado: nos depoimentos e cenas dramatizadas no presente, os dissabores veem à tona, e uma nova ordem parece se estabelecer. Materiais de arquivo, filmados na época, corroboram: em um deles, uma aula sobre orgasmo tirada de Wilhem Reich, lembra a potência orgástica dos seres humanos e como muitas normas vieram conter/aniquilar/fechar essa ideia de se ter prazer sexual.
As memórias desse período revolucionário – conhecido também pela data de 25 de abril, dia da revolução que acabou com décadas de ditadura e deflagrou o desmonte do império colonial português – “ainda estão muito vivas”, de acordo com Filipe Costa, e foi por isso que conseguiram ser dramatizadas desta forma. Foi uma revolta militar: em 1974, Marcelo Caetano, o sucessor de Salazar, foi deposto e fugiu para o Brasil. A presidência de Portugal foi assumida pelo general António de Spínola: a população saiu às ruas para comemorar o fim da ditadura e distribuir cravos, a flor nacional, aos soldados rebeldes, em forma de agradecimento. Seguiu-se um período de grande agitação social, política e militar conhecido como PREC (Processo Revolucionário Em Curso), marcado por manifestações, ocupações, governos provisórios e nacionalizações: finalmente, uma nova constituição democrática entrou em vigor no dia 25 de abril de 1976 e estabilizou o país. Nos costumes, entretanto, o país continuou provinciano: “Prazer, Camaradas” utiliza as mulheres estrangeiras para expor a relação inquinada dos locais com os tabus sexuais. O diálogo sobre lesbianismo em inglês é um desses momentos: a Revolução alterou tudo, mas manteve as mesmas estruturas de poder patriarcal e os mesmos papéis de mulheres e homens.
“O filme parte muito dos encontros e desencontros, dos choques entre estrangeiros e portugueses” afirmou José Filipe Costa. “Eram dois universos distintos que conviviam no mesmo lugar. Os estrangeiros vinham com outro tipo de leituras e mundividência”. Em várias situações, cidadãos de outros países mostram-se surpreendidos por serem sempre as mulheres a tratarem das tarefas domésticas. O realizador sugere que os estrangeiros “chegavam a estas zonas rurais isoladas e não compreendiam como a revolução não alterava certos aspectos da vida” daquelas pessoas. É com um humor sem preconceitos – seja em relação à realidade, à encenação, aos corpos – que “Prazer, Camaradas” revisita esse microcosmo histórico de Portugal, a um tempo tão longe e tão próximo da nossa realidade brasileira.