Pinóquio
A verdade da mentira
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Berlim 2020
Ao término da sessão para imprensa de “Pinóquio” no Festival de Berlim 2020, os jornalistas dos quatro cantos do Mundo permaneceram minutos de pé aplaudindo ao novo filme de Matteo Garrone (de “Dogman“), ate mesmo os italianos que não costumam gostar de suas obras cinematográficas. A refilmagem Live Action foge completamente da fantasia conservadora dos princípios morais elencados na primeira versão. O longa-metragem é duro, seco e de mundo cão, à moda de Victor Hugo e seus miseráveis em luta pela sobrevivência, com quase impossíveis perspectivas de futuro. Ainda que sua narrativa se traduza com características tipificadas do clássico conto-de-fadas, teatralizando as interpretações ao potencializar micro-ações detalhistas, este “Pinóquio” pontua existências filosóficas em projeções fabuladas do real, almejando o impossível como a metáfora do inalcançável.
Baseado no livro de 1883 “As Aventuras de Pinóquio” , do autor italiano Carlo Collodi, o filme em questão aqui também soa bíblico. Um marceneiro pobre e um boneco de madeiro. A solidão-carência que transcende a lógica e reverbera uma verdade compartilhada. Há quem diga que os olhos veem o que se mais deseja no mais íntimo das vontades. A “madeira mágica”, um artefato-tesouro “encantado ou possuído”. Aqui, o grilo falante está mais para Yoda. E Pinóquio (criado por meio de uma maquiagem protética em vez de CGI), mais parecido com um robô de inteligência artificial de “jeitinho” inocente para conseguir as coisas. Não sabemos se proposital, mas “A Vida é Bela” é quase diretamente referenciada, talvez por seu ator Roberto Benigni, que por sua vez dirigiu o filme infantil “Pinocchio e a Fada Azul”. Coincidências interligadas? Se no de 2002 a ambiência texturiza a forma padrão, neste a técnica da fotografia, direção de arte e figurino desenham o barroco. Um neorrealismo fantástico a fim de “sujar” a aventura de uma vida em construção.
O longa-metragem é um épico. Uma saga de amadurecimento. Uma ressignificação da família e do desejo de desbravar o Mundo à espera de um milagre. Nosso andarilho “errante” (por ingenuidade) troca a escola pelo circo. E dessa maneira, o que era encenação teatralizada vira um manancial de emoções verdadeiras, sinestesia e potência orgânica. É a própria vida acontecendo, visceral, por um road movie andante, com seus conflitos, suas reviravoltas, suas traquinagens enganadoras, suas crenças e descrenças, humanidade e solidariedade. Anjos e demônios. Mercenários e altruístas. Uma “ilusão” vendida para se “tornar um menino de verdade”. Sim. Uma das máximas do conservadorismo que poda voos e expansões do ser. Aprende a desonestidade, hostilidade, soberba, os sete pecados e a maldição sádica adquirida da fase adulta. Um abuso de vulnerável pela ganância fácil das “moedas de ouro” em bosques abandonados, à moda realista de “Alice no País das Maravilhas”. Entre aviso “pesado e enforcado”, a “consciência” começa a se desenvolver, percepção que só acomete só aos humanos.
Não satisfeito em remodelar “Pinóquio” (2019) numa “pintura renascentista”, Matteo traz também sutis inferências a outras obras da Disney e os Irmãos Grimm. É surrealista e cruel. Nosso viajante descobre que nem todos são legais e amigos. A cada decepção do mundo-cão (acaso e injustiça), fica mais próximo de ser real, sem notar que o querer ser já representa o que já se é. Ele aprende a mentir e sofre as consequências. “Pinóquio” é a metáfora auto-ajuda de se viver o Mundo. Uma parábola, agora impressionista à moda de “O Pequeno Príncipe”, de aceitação-conhecer do bem como fluxo propulsor da felicidade plena e simples, pela mensagem empírica de que o que se quer já se tem. E o novo buscado é apenas um passatempo. Atravessa o mar para poder voltar ao que era.
“Pinóquio” não envelhece, porque “bonecos serão sempre bonecos”. Faz de tudo para conseguir o que quer. O que já não é mais importante. Perpassa pelas fases da “escola da vida”. Do pivete à redenção. Mas antes adentra no mais submundo das experiências. Velhos “excêntricos”, burros ajudados, cidade dos brinquedos, perdão de Deus, a trabalhar por comida, que diversão demais enjoa e o capitalismo versus decência-dignidade. A pobreza, a fome, corrupção e a destruição de um modelo-sistema. É um crescente filme-mutação. De se tornar outro ao experimentar tentativas de possibilidades. Assim, “Pinóquio”, com um que sem glamour de “Forrest Gump – O Contador de Histórias”, de Robert Zemeckis, também quer a volta, mas não descarta a ida. Viajar é preciso para retornar a mais intrínseca das essências.