Pepe
Uma representação do indivíduo perante o coletivo
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Berlim 2024
Há obras que conseguem transpor a própria autoralidade da criação, adentrando numa seara de liberdade narrativa tão experimental que alcança o status vanguardista de uma nova estética, que se utiliza da metafísica como ponto essencial para construir sua atmosfera sensorial, elemento temporal tem algo de estranho e solto, que ao mesmo tempo distancia o espectador e o capta pela curiosidade da espera pela nova investida criativa. “Pepe”, do cineasta dominicano Nelson De Los Santos Arias (de “Cocote”, 2017, que estreou no Festival de Locarno, ganhando o Leopardo de Ouro na categoria Signs of Life), é um desses exemplos ao trazer logo em seu argumento inicial a figura do hipopótamo de Pablo Escobar, o traficante internacional mais famoso e “cult” do mundo.
Aqui, ao ambientar o épico dessa vida animal, somos imersos em um estudo antropológico de um meio social. Dos funcionários “serventes” que mantém toda a organicidade da mansão em toda sua estrutura formal. Nós não só observamos, mas participamos passivamente de todo o processo de trazer os hipopótamos para o “novo habitat natural”. Cada um deles é “sequestrado” de suas “terras natais” para e existir apenas como imagem e conceito. Isso tudo é a grande metáfora do filme. “Pepe” é o povo vulnerável sendo conduzido de forma “manada” por “poderes maiores”. Mas que movimenta tudo ao redor, gerando empregos. Ao imprimir esses simbolismos comportamentais, entre imagens de arquivo de pessoas felizes dançando, é analisado a própria cadeia social. De vida acontecendo, por frames estendidos, como a briga de um casal, uma obra real e conversas sobre sonhar mudar de vida. O formato da tela quadrada, em película, complementa a experiência sensorial sendo “transmitida” com interferências de rádio, entre uma a televisão com coloridos desenhos animados de jacarés, e com a sombra da luz da imagem. Na mesma televisão, o noticiário urgente informa a morte de Pablo Escobar.
E é aí que o filme busca ir além do experimental ao inserir a narração do próprio hipopótamo, inclusive com todas as onomatopeias do animal em questão (pode sim lembrar “EO”. “Pepe” é um filme de intercalação comparativa. De um lado a metáfora dos turistas tirando fotos em um zoológico. Do outro, a observação natural dos mamíferos, tomando banho no rio entre iguais em estágio selvagem. Há ainda mais um: a odisseia, que mostra todo o transporte por helicóptero de três desses bichanos. Uma maldição (que cheira à morte) ou tiraram a sorte grande quando foram escolhidos? “Pepe” foi o assunto mais comentado no Festival de Berlim 2024, especialmente por integrar a competição oficial ao Urso de Ouro (e por ganhar o prêmio de Melhor Direção). Sim, pode se falar tudo do filme, mas não que não inova sua linguagem.
Após a sessão, muitos disseram que o filme não tinha propósito (e que dormiram por conta do som “ninhado” característico dos hipopótamos de grunhir, roncar e soprar ao mesmo tempo. Outros o defenderam como de conceito existencialista-coloquial de metáfora de nossa sociedade. Sim, nós aqui não fomos tão radicais. Conseguimos sim encontrar inúmeras qualidades e embasamentos à proposta, mas também percebemos que a própria narrativa tendia a uma estética excessiva e repetitiva de suas ideias. “Pepe”, dessa forma, não só se firma como um divisor de opiniões, como quanto mais pensamos no filme mais nos damos conta de sua autoralidade de invenção e de subverter as regras e caminhos (especialmente se trouxermos o campo dos filmes independentes mais underground. Talvez porque exista ali uma metafísica extracampo, de ir além da imagem, e ao “bugar” nossas mentes, a consequência é o afastar ou aproximar o público.
“Pepe” é o que se chama de “filme que bate”. Ora por identificação estilizada, ora porque talvez pensamos iguais e ainda não “acordamos”. Sim, é um longa-metragem que se quer abordar muitas questões. Seu roteiro almeja o “finalizar” e o tornar definitivo. Talvez nisso seja ingênuo, impulsivo, passional e incondicional demais com a mensagem objetivada. Sim, podemos falar tudo, menos que “Pepe” não causa burburinho grunhido, roncado e soprado. Talvez, para terminar, a figura do animal seja a representação de nossa vida, de nossa impotência social, de nossa sobrevivência intrínseca, de nossa função como indivíduo perante o coletivo. Talvez não seja nada disso, apenas uma “viagem”. E só por isso, já vale o ingresso!