Peixe Abissal
Margens e sexualidade
Por Vitor Velloso
Durante a Mostra de Tiradentes 2023
Entre os retratos de sobriedade e um grau de questões pouco convencionais. “Peixe Abissal”, de Rafael Saar, é um curioso projeto que expõe certas obsessões e vícios de um personagem que vaga pelo Rio de Janeiro e Niterói, para suprir necessidades incontornáveis, de um determinado submundo. Entre o Cine Iris e espiadas no banheiro, o filme compõe esse retrato a partir de encontros casuais em filmes pornôs e striptease que movimentam a libido do protagonista, em um ciclo de intimidades, relações sólidas e familiares, além de um caráter religioso em determinado momento.
Com a música com forte presença ao longo da projeção, a trilha sonora não apenas ajuda na construção de uma mise-en-scene tão complexa quanto a de “Peixe Abissal”, como parece encontrar um espaço que, dialeticamente, se imbrica na narrativa visual, ao passo que parece suspender as relações de maneira direta. Essa decisão é de enorme importância para a construção do projeto, pois dita o ritmo da narrativa e apresenta desejos do protagonista, na medida em que relaciona com questões dramáticas particulares, normalmente vinculadas à interação de Capucho com sua mãe. Existe um número de Ney Matogrosso que é especialmente belo nesse contexto, antecipando a representação da sereia como uma questão importante para a estrutura da narrativa. Não por acaso, o título está constantemente relacionado às performances e hábitos de Capucho, criando uma sólida consciência dos atravessamentos entre a criação artística, o desejo e o cotidiano.
“Peixe Abissal” não foi apenas um filme aguardado na Mostra Aurora, como se tornou uma das obras mais unânimes nos debates que aconteceram após as sessões e, com alguma margem, recebeu os aplausos mais calorosos do público presente no cine-tenda. Existe alguma dificuldade de categorizar alguma significação em determinadas cenas da obra, mas isso não diminui o que é a experiência de assistir ao filme na tela grande. Sem dúvida, uma das sessões mais marcantes da 26a Edição da Mostra de Tiradentes, não apenas pelo longa em si, mas pelo espetáculo visual que ganha forma diante do espectador.
Entre essas intimidades que se apresentam diante do público, a sexualidade possui uma questão central no projeto, não apenas pela questão envolvendo o protagonista, mas por ser um processo de liberdade que não se compreende na forma como a sociedade encara essas trocas, anônimas ou já pré-estabelecidas. O Cine Iris se torna um personagem constante da película, justamente por ser um refúgio possível dessa margem que vai expondo algumas entranhas de “Peixe Abissal”. Nesse movimento, Capucho consegue sustentar o filme como um centro gravitacional, atraindo a estrutura do projeto em torno de sua persona, desejos traduzidos em cenas e encontros que sintetizam criações e expressões artísticas. Auxiliado por uma direção de fotografia, assinada por Matheus da Rocha Pereira, o protagonista é capaz de assumir diferentes características de múltiplos espaços distintos, sem que o fetiche se torne fetichismo, ou uma muleta de exposição do sexo e prazeres.
Rafael Saar e Luciano Carneiro, que assinam a montagem, são sólidos em provocar certas rupturas na narrativa, sem que tudo desmorone e se torne irracional, pelo contrário, a sintonia entre a atuação de Capucho, a direção de fotografia, o trabalho de direção e montagem, “Peixe Abissal” é relativamente sóbrio diante da gama de possibilidades que se apresentam ao longo da projeção. Mesmo que parte do público sinta dificuldade de extrair uma racionalidade mais objetiva, não há como fugir do impacto da obra na Mostra Aurora.
Um dos destaques deste ano na Mostra, o filme cumpre com as expectativas geradas em torno dele e se projeta para obter algum sucesso entre nos circuitos de festivais nacionais. Transcendendo entre um suposto delírio e a compreensão de que as relações pessoais são atravessadas pelo caráter social de cada espaço, o projeto pode provocar intensas reflexões pós-sessão, tanto pela significação de determinadas cenas, quanto temáticas que surgem no eixo de determinadas provocações necessárias feitas pela obra. Desde a figura da sereia até a religiosidade que está inserida na forma como a relação mãe-filho é apresentada, o número de questões vai se multiplicando até um ponto em que sua complexidade pode se caracterizar entre os constantes números musicais que redefinem o universo da película.