Parasita
Quem quer ser um milionário?
Por Fabricio Duque
Durante o Festival de Cannes 2019
Exibido na mostra competitiva do Festival de Cannes 2019, “Parasita”, do diretor de quarenta e nove anos de idade, Bong Joon-ho, de “Okja” (que também foi exibido aqui, mas com a polêmica por causa de ser da Netflix), venceu a Palma de Ouro, sendo o primeiro filme sul-coreano a ganhar o prêmio máximo.
O longa-metragem logo de início encantou e cativou por unanimidade seu público pelo simples fato conjugar um leve e espirituoso humor com o aprofundamento crítico social, traçando um estudo de caso sobre o comportamento do ser humano perante a comunidade em que vive e sente o engessamento de um sistema político que conduz todos à margem. À invisibilidade. À necessidade da sobrevivência a qualquer custo. Assim, o sentido de moralidade é ressignificado pela mitigação total da ideia maniqueísta, e a ética transformada em trambiques e a perspicácia do viver.
“Parasita” não é um filme fácil para traçar linhas analíticas. Não pela dificuldade do tema, até porque a trama é direta e sem subterfúgios, outra maestria, que é a união do entretenimento popular com o cult existencialista. O que complica é ter que pisar em ovos para não contar nenhum detalhe da história e estragar a surpresa.
É uma surreal crônica-fábula por personificar a estranha ambiência e a integrar na espontaneidade do cotidiano e de vidas tão antagônicas. Há uma suspensão do tempo que nos permite imergir nas mais sutis reações e expressões do mais submerso da alma humana. Sim, é um filme humano, orgânico e metafísico.
“Parasita” é surreal se percebermos que o ser humano, enquanto nosso próximo, conserva a essência mais íntima quando não reparado, sendo o mais verdadeiro possível. Perde-se as máscaras e hipocrisias sociais. É exatamente este tom e estágio que o diretor quer transpassar. É a vida como ela é, com suas meias na entrada e pedra ancestral presenteada.
O roteiro nos faz embarcar em uma ingenuidade não simplista e em uma inocência tão esperançosa (apesar da pobreza) e rotineira (do fumacê contra os mosquitos e o cheiro que fica), que nós sentimos suas vulnerabilidades arraigadas, inferindo ao filme “Família Vende Tudo”, de Alain Fresnot; “Nove Rainhas”, de Fábian Bielinsky. Contudo com a construção da mise-en-scène pela estrutura sul-coreana que não suaviza reviravoltas.
“Parasita” é sinestésico e seu diretor nos manipula completamente por seu controle absoluto de tempo, espaço, silêncio, histeria e violência. Realmente não sabemos como Bong consegue inserir e equilibrar sensações ao mesmo tempo. Talvez esta seja uma característica do povo de seu país.
Essas personagens sobreviventes estão parasitas, baratas que se espreitam por cantos com o intuito de ganhar migalhas e oportunidades (“doadas” por outros ainda mais ingênuos ao lidar com a realidade do mundo). E o mínimo de dignidade. É sobre o observar e fofocar como se a vida lá fora fosse um programa de televisão e uma falsificadora metáfora de histórias possíveis e sonhadores simples que apenas almejam reconhecimento e uma melhora de vida. Sim, são inteligentes para descobrir os jeitinhos arquitetados mais confortáveis das vidas vazias por passagens secretas.
Pela definição do dicionário Aurélio, parasitas ou parasitos são organismos que vivem em associação com outros dos quais retiram os meios para a sua sobrevivência, normalmente prejudicando o organismo hospedeiro, um processo conhecido por parasitismo. E no termo pejorativo, diz-se de ou indivíduo que vive à custa alheia por pura exploração ou preguiça.
“Parasita” é estranho, analógico, realista e plural de personalidades adversas, entre exames, brincadeiras de índios, pinturas auto-retrato à moda de Basquiat. É um filme que desperta o riso solto e infantil (na melhor definição da palavra e não pastelão) quando adestra os métodos. É um filme de jogo-planejamento do plano a ser executado com “arte psicanalista e terapêutica”, com discórdias implantadas e semeadas, e com o falar o certo, quase por “esquizofrenia”, tudo propositalmente desengonçado.
É também sobre o que o ser humano quer. Sobre a projeção do ter. Aqui, o “quintal do vizinho é mais verde” e desejado. E as “coisas caras”, muito melhores. A fotografia busca o elemento interferência, quebrando o lúdico com a realidade, como a genial cena do celular da rua em câmera lenta. É sempre inserção e quebra.
Não há bom ou mau em “Parasita”. O que encontramos são seres em processo de vida, que falam na “mesma língua do crime cúmplice” e que são confrontados pela “sadismo” do acaso, os tirando do plano e reverberando a máxima do “um dia da caça, outro do caçador”. Pode ser considerado um filme revolucionário devido ao simbolismo crítico de transformar “animais selvagens” e “pobre neandertal” em “rei”.
Que querem sentir o toque artístico com ou sem música italiana. Tudo mudo, até mesmo sua trilha sonora. As reviravoltas ficam ainda mais surreais e impactantes. É criada uma naturalidade tensionada e aflitiva, com humor constrangedoramente sagaz e coloquialmente aceitável, para lidar com pessoas que estão “confortáveis sem sonhos” ainda que na mais extrema pobreza e enchente. Sim, “Parasita” é isso tudo e muito mais. Uma obra-prima.