Para’i
A raiz das coisas
Por Vitor Velloso
Nos primeiros minutos de projeção do longa-metragem “Para’i”, de Vinicius Toro, fica claro para o espectador que o projeto realiza um trânsito entre a ficção e o documentário. Não apenas do ponto de vista da construção de linguagem proposta na obra, mas na articulação entre um suposto material de arquivo e a maneira como o cotidiano da protagonista Para (Monique Ramos Ara Poty Mattos) é apresentado. Contudo, o caráter subjetivo, que se debruça nas particularidades de uma personagem que molda toda a representação do mundo concreto, torna-se a tônica de um filme que reforça a necessidade de preservação da cultura.
À primeira vista, o discurso soa relativamente genérico, mas “Para’i” consegue desenvolver uma bela sensibilidade de como a sociedade brasileira se desenvolve a partir de uma dicotomia tão agressiva quanto historicamente perpetuada por diversas instituições. Não se trata, essencialmente, de uma síntese do Brasil ou qualquer tipificação que queira abranger mais que a particularidade da história da protagonista. Mas sim uma forma de representar a dificuldade da preservação cultural dos povos originários, sobretudo um conceito que perdeu parte de sua complexidade no mundo contemporâneo, ao menos no senso comum, o de identidade. Algumas obras ou discursos visam categorizar a “identidade”, enquanto conceito, a partir de uma vertente epistemológica, outros optam por uma diferenciação rígida de um referencial proposto. Na verdade, o debate é denso o suficiente para permitir que uma crítica de cinema se abstenha de qualquer afirmação. Contudo, esse é justamente um dos méritos do longa, que propõe uma demonstração de como a identidade passa por diferentes referenciais, que não se excluem, mas se conflitam, ao longo da formação de um agente social. E no caso de “Para’i” as questões passam por etnia, fé, história e o apego por um simbolismo que é assumido na construção dramática.
Sem dúvida, a dualidade entre a tribo e a cidade, rege parte dos conflitos aqui, não apenas por uma mudança de cenário, formas de enquadrar e fotografar, mas na representação de como esses “diferentes mundos” afetam a percepção de mundo da personagem Para. Seja a igreja católica ou a internet, esse filme de amadurecimento possui um objeto curioso em si, pois abre uma série de margens de desenvolvimento.
A curiosidade e a ingenuidade, encontrando um ponto de representação entre o milho colorido e o “milagre”, permite uma dinâmica que de auto referenciação dentro deste universo particular, onde a manutenção da cultura não está apenas em cheque, mas a própria identidade, como dito anteriormente. E dentro desta percepção, há uma possibilidade de debate para o “não-pertencimento”, típico dos povos latino-americanos (não como um ponto político, mas geográfico), tanto pelo desenvolvimento do subdesenvolvimento, quanto pela formação histórica banhada de sangue. Contudo, “Para’i” não pretende debater a unicidade do povo brasileiro ou uma história única desse pertencimento, ao menos não nos moldes de uma questão teórica, como Stuart Hall, autores pós-colonialistas ou a tematização da identidade e do nacional em um mundo globalizado como Renato Ortiz. O foco não é se ater em epistemologias e ontologias distintas e refletir sobre a particularidade do caso, é uma proposta de desenvolvimento de personagem que passa a compreender pequenos simbolismos desta conflituosa relação entre o mundo pavimentado pelos “brancos”, com suas violências simbólicas, e o mundo que Para encontra em sua aldeia, onde a incompreensão da língua e de figuras importantes de seu convívio tornam-se pontos vitais para o processo de amadurecimento.
Recentemente no site, fiz uma menção sobre a limitação da analogia como uso de reflexão da realidade concreta, justamente por ser uma forma que encerra em si parte de sua discussão. Porém, “Para’i” utiliza-se desse recurso com inteligência, pois trabalha com humildade suas temáticas, o que não deve ser confundido com falta de ambição, sem se atrapalhar em investidas estéticas que visam uma exposição mimética de sua realidade. Esse é o grande trunfo do filme, saber desenvolver seus elementos com precisão e paciência. Por isso, partir da perspectiva da criança é um enorme acerto para firmar uma posição diante de um mundo que se complexifica ao nosso redor, ainda que estas respostas possam ser encontradas na raiz das coisas.