Curta Paranagua 2024

Para Sempre Uma Mulher

Ele veio me ver morrendo

Por João Lanari Bo

Para Sempre Uma Mulher

pela insônia

a noite se prepara para me dar

alguma coisa

um sapo, um cachorro preto

aquele que se afogou

(Fumiko Nakajo)

Para Sempre Uma Mulher”, de 1955, longa de Kinuyo Tanaka, pertence à safra dos filmes clássicos japoneses do pós-guerra, um dos períodos mais férteis da história do cinema – mas, com uma diferença radical: trata-se de um olhar feminino sobre dramas familiares, distinto daqueles que orientam a cinematografia masculina de Yasujiro Ozu, Mikio Naruse e Kenji Mizoguchi, para citar os mais famosos. Para um país de forte tradição patriarcal – entendido aqui como sistema sociopolítico que coloca os homens em situação de poder, ou seja, o poder pertence aos homens – não é pouca coisa. Tanaka, atriz em 217 filmes, muitos do trio supracitado, foi a segunda mulher a dirigir filmes no Japão quando estreou em 1953, superando a tudo e a todos, inclusive diretores com quem trabalhou.

Kinuyo foi casada por um breve período com outro grande autor no cinema japonês, Hiroshi Shimizu, e protagonizou alguns dos melhores filmes de Mizoguchi depois que o Japão perdeu a guerra, em 1945 – tais como “Oharu, a Vida de uma Cortesã”, de 1952, e “Os amantes crucificados”, de 1954. Nessa altura havia se tornado um obscuro objeto de desejo de Mizoguchi. Depois de estrelar quinze de seus filmes, era público e notório o amor platônico a ela dedicado pelo diretor. Ao que parece, porém, jamais declarado, segundo depoimento da atriz, que admitiu apenas um “casamento cinematográfico” entre os dois.

Também era público e notório que Mizoguchi negou uma recomendação ao “Directors Guild of Japan” para que a produtora Nikkatsu contratasse Tanaka como diretora – ela conseguiu por outros caminhos, graças ao prestígio na indústria e amizade com nomes influentes, como Ozu. O perspicaz crítico inglês Tony Rayns insinua que a recusa da recomendação deixou Tanaka magoada e Mizoguchi amargo e indiferente, estado que deixou transparecer enquanto dirigia “Os amantes crucificados”, conforme relato do roteirista Yoda Yoshikata.

Mas essa é outra história: quando dirigiu “Para Sempre Uma Mulher”, Kinuyo Tanaka estava no apogeu do seu talento de realizadora. Inspirado na biografia “Seios Eternos” da poeta Fumiko Nakajo, narra a trajetória de uma mulher casada e infeliz, com dois filhos pequenos, em Sapporo, capital de Hokkaido no extremo norte japonês – e que escreve poesia em seu tempo livre. O marido, infiel e frustrado, a atormenta: o divórcio, cisão familiar, é inevitável – o casamento fora arranjado, e é ela quem formaliza a separação. Sua poesia reflete esse páthos, seus poemas adquirem um tom realista, tido pelo grupo de poetas amadores que frequenta como “exagerado”. Seu amigo e mentor Hori (Mori Masayuki, outro grande ator) é o único que a apoia e envia seus poemas para uma editora em Tóquio. Fumiko nutria um amor platônico por ele, que morre repentinamente.

O ponto de virada de “Para Sempre Uma Mulher” ocorre quando Fumiko é diagnosticada com câncer de mama. Após a mastectomia dupla e com metástases em ambos os pulmões, ela é internada, mas se recusa à autopiedade e vitimização. O impulso criativo da poesia é inseparável da sua dor, e seu romantismo face à morte é expresso tanto em momentos de franqueza como de contenção. A repercussão de seus poemas na capital do país motiva a visita do jornalista Otsuki (Hayama Ryōji), principal divulgador da obra – ela reluta em recebê-lo, suspeitando que ele esteja mais interessado em sua morte iminente do que em seus textos. Ele veio me ver morrendo, diz à mãe.

O que poderia ser um melodrama carregado de clichês é transfigurado pelas opções estéticas de Kinuyo Tanaka, que permitem a reconstrução da interiorização da morte na personagem de modo distanciado, visto pelo seu entorno afetivo, como também de maneira introspectiva, pela vivência e progressiva consciência do fim que Fumiko experimenta. As sequências em close do rosto de Fumiko – vivida pela excepcional atriz Yumeji Tsukioka – expressam esse duplo movimento de maneira notável. Outra grande cineasta, Germaine Dullac, escreveu:

O grande primeiro plano, como chamamos, é o próprio pensamento do personagem projetado na tela. É a sua alma, a sua emoção, os seus desejos. O close-up é também a nota impressionista, a influência passageira das coisas que nos rodeiam.

Ao fim e ao cabo, Fumiko pede à mãe que lave seus cabelos.

5 Nota do Crítico 5 1

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