Pão Amargo
A esperança dos seis dólares
Por Fabricio Duque
Durante o Festival É Tudo Verdade 2020
É inerente a todo e qualquer ser humano a mudança. Buscar uma vida melhor torna-se uma necessidade orgânica e focal, quase absoluta no querer visionário da “grama mais verde” do “Eldorado”. Mas quando o sonho-futuro ganha contornos de urgente obrigação para “fugir da morte”, essa necessidade é transmutada em sobrevivência, acarretando deixar a terra natal, a Síria, e ser refugiado em outro país, ainda que pagando um alto valor para atravessar, ilegalmente, a fronteira à terra das oportunidades, o Líbano. Só que este novo cenário é quase tão pior quanto as ruínas deixadas para trás. Tudo isso é abordado no documentário “Pão Amargo”, de Abbas Fahdel, realizador franco-iraquiano (curioso, visto que uma das críticas dos personagens diz que o Iraque é o responsável pelos bombardeios na Síria).
Exibido no Festival de New York 2019, o filme, que chega agora à seleção oficial da edição online do É Tudo Verdade 2020, apresenta-se como uma crônica do dia-a-dia desses refugiados, “Aliens” que encontram na geografia atual, outra guerra, a da indiferença do governo, o descaso humano da população, o alto custo de vida (500 mil dólares por uma tenda – assentamento informal na região norte do Vale do Beca), sem empregos no inverno e salários baixos (de 6 dólares por dia, tendo 2 de dedução, o que sobra 4 dólares), e a explícita exploração (de coronelismo à moda Serra Pelada). Todo o tempo, eles são “testados” na paciência, na esperança e no “casamento aos 18 anos” (por decisão própria). “Deus proverá! Ele é generoso”, respondem com fé e otimismo. E nem a rigidez dos “shawish” (papel tradicionalmente atribuído a homens refugiados que supervisionam e gerenciam esses assentamentos).
Em “Pão Amargo”, a narrativa, que nos informa que só há um libanês (inicialmente solidário, vestindo uma roupa de Papai Noel e doando casacos), nos conduz pela observação intimista do contato direto, entre crianças do “campo 3” que se divertem (posam e brincam para a câmera, expressando a felicidade em seu grau mais puro, ingênuo e utópico, quase imoral), como se aquele fosse o melhor lugar do mundo (tanto que elas recebem uma dedicação do próprio filme). Nós somos incluídos em suas vidas e dificuldades, ainda que as conversas sejam encenados para a câmera, como uma ficção da vida real. Os novos “libaneses”, convivem entre dívidas (falidos, praticamente, entre “migalhas de pão”, ratos, alagamentos), mas não desejam retornar. A psicanálise, a ciência e o próprio conhecimento empírico nos mostram que todo e qualquer indivíduo social é adaptável e se acostuma rapidamente as novas condições. Contudo, no novo cenário de guerra, “shawish”, nomeada por outros refugiados, coordena, supervisiona e toma as decisões. Nós podemos até entender a mutabilidade do ser humano, mas será que vale à pena viver em condições tão degradantes? “Somos impotentes”, brada um dos personagens, contudo continuam a querer construir uma existência no meio do nada oferecido.
O longa-metragem ao acompanhar expõe que nada do que assistimos é certo de ver. Que a estrutura sistêmica da perpetuação de “dever a vida toda” é cruel e hostil aos olhos dos conscientes. Uma das falas apresentadas em “Pão Amargo” é a do líder do país que discursa que agora a guerra da Síria está mais branda e que o êxodo invertido já passou da hora de acontecer. Não, os ainda conscientes e ainda humanitários (resquícios humanos também são permitidos) não conseguem racionalizar o porquê de transformar povos diversos em inimigos em potencial. Cada um deles sofre a força do crescimento globalizado. Do “progresso” neoliberal que arrasta vidas para um indecifrável e ininteligível bem total da nação. Tornaram-se trabalhadores (escravizados pelo capitalismo) para assim vender suas necessidades básicas do funcionamento do corpo por trocados diários.
“Pão Amargo” tem sua importância social e um relevante argumento documental, e mesmo que realize uma análise antropológica moderna de comportamentos incompatíveis com o meio vivido, ainda assim o filme soa como uma propaganda política, como se fosse um comercial mais naturalista da Unicef. Há exposição demais para provar o ponto do motivo da mudança, mas tudo ali parece encenado, muito pela interferência ficcional de se criar as cenas como um roteiro (que desvirtua a credibilidade do próprio discurso). Esse incômodo não atrapalha o desenrolar da trama, mas transpassa a máxima de ser “para inglês ver” (neste caso os americanos de New York).