Curta Paranagua 2024

Palácio de Verão

Amor é uma ferida no coração, quando cura, acaba

Por João Lanari Bo

Festival de Cannes 2007

Palácio de Verão

Palácio de Verão” é um épico histórico-sentimental que o chinês Ye Lou realizou em 2006, com uma premissa ambiciosa: cobrir 14 anos dos encontros e desencontros amorosos, sempre seguidos de melancolia, de um casal de jovens universitários na China moderna, o gigante que se levanta. Perdas e traumas são a tônica, como convém à turbulência dos sentimentos juvenis, de corpo (sexo) e alma (afeto). A sacada diferencial: o ponto fulcral dessa aventura se dá em Pequim, em 1989, ano das manifestações da Praça da Paz Celestial, a enorme praça Tiananmen – o grande trauma histórico que o gigante asiático teve que absorver para ingressar na modernidade. Começando em 15 de abril com estudantes e insatisfeitos em geral acampados na praça, os protestos em prol de liberdade política foram reprimidos à força três meses depois, em 4 de junho, quando o governo declarou lei marcial e enviou tropas do exército para liquidar a fatura. As estimativas do número de mortos variam de centenas a milhares, com milhares de feridos: ninguém sabe ao certo, transparência não é o forte das estatísticas oficiais. O governo admitiu, depois de muita pressão, que mais de três mil civis foram feridos e cerca de duzentas pessoas, incluindo 36 estudantes, foram mortas. O dia fatídico da repressão é mostrado através dos olhos dos protagonistas – coisa raríssima na cinematografia chinesa, o assunto é tabu até hoje – e também de cenas intercaladas de news da época. É nesse momento que se dá a separação física do casal, ela (Yu Hong) retornando abruptamente à cidade natal, e ele (Zhou Wei) cavando uma viagem para Berlim. O clímax de Tiananmen é precedido de traições e desamparos, com a intensidade das paixões que se espera das narrativas românticas: na sequência, os anos passam, Yu Hong parte para diferentes cidades da China, Shenzhen e Wuhan, e Zhou Wei assenta-se em Berlim. Ambos os atos, de escape e superação, podem ser vistos como tentativas dos protagonistas de curar seus traumas, pessoais e históricos. O reencontro final, já em 2001, é a confirmação de que o amor é uma ferida no coração, quando cura, acaba – pensamento atribuído a Li Ti, amiga que também emigrou para Berlim.

São muitas as reviravoltas na vida de Yu Hong, que tende a uma melancolia incurável – superada, temporariamente, com sexo. Em voz off, ela lê trechos de seu diário, muitas vezes fazendo amor com Zhou Wei: quando entabula casos sexuais com outros homens, os quais ela não ama, mergulha na melancolia, desta feita autodestrutiva. Seu trauma acumula consequências psicológicas de experiências sexuais malsucedidas com o substrato da vivência histórica do “incidente” da Praça da Paz Celestial. Zhou Wei também deixa-se levar pelo ethos melancólico das rupturas: termina engatando, em Berlim, um tórrido relacionamento com Li Ti, por sua vez casada com outro chinês expatriado. Enquanto os três caminham pelas ruas em meio à euforia pela queda recente do muro que dividia a cidade, veem um grupo de manifestantes carregando uma enorme bandeira política com retratos de Marx, Lenin e Mao, resíduos do mundo socialista que deixaram para trás. Embora o diretor Ye Lou tenha reiterado que não teve intenção de fazer de “Palácio de Verão” um filme político, o rompimento de Yu Hong com Zhou Wei ocorreu no dia 4 de junho de 1989, ligando simbólica e inextricavelmente a perda amorosa à violência do massacre. Seguindo nessa trilha, a posterior compulsão sexual e a inevitável perda da autoestima de Yu Hong podem ser vistas como repercussão do trauma de 1989. Ye Lou nasceu durante a Revolução Cultural maoísta, em 1965, estudou na Academia de Cinema de Pequim quando ventos liberais bateram na China, e formou-se exatamente em 1989 – conheceu de perto, portanto, os acontecimentos que sacudiram a capital chinesa.

Um filme, afinal, que relaciona sexo e política, inapelavelmente. As cenas de sexo, fundamentais para captar a transição emotiva e psicológica dos personagens, são fortes e pouco usuais: consta que o primeiro nu frontal feminino na cinematografia chinesa ocorreu no “Palácio de Verão”. O cruzamento dessas imagens raras – Tiananmen e sexo – foi uma das motivações que levou as autoridades chinesas a proibir Ye Lou de dirigir filmes por cinco anos. A gota d’agua foi a inscrição do filme no Festival de Cannes, diretamente, sem passar pelos canais de aprovação estatal. Na volta à mainland chinesa, exibição comercial, nem pensar: a principal circulação acabou mesmo nos DVDs piratas. E no circuito internacional, naturalmente.

 

4 Nota do Crítico 5 1

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