Oxigênio
Ansiedade
Por João Lanari Bo
Netflix
Ansiedade: sensação de aflição, receio ou agonia, sem causa aparente. Esta é a definição dos dicionários para o sentimento que contaminou as relações humanas nessa crise pandêmica que atravessamos. Sentimento: capacidade ou aptidão para receber as impressões do mundo externo; faculdade de sentir. Assistir à gestão da saúde pública nesses dias tornou-se um ansioso exercício diário de absurdidades e distanciamentos: salvemo-nos dos inimigos da razão, já dizia o biólogo e ateu militante Richard Dawkins. Mas, ninguém mesmo poderia prever a escala universalmente assombrosa da pandemia: a ansiedade é incontornável; para exorcizá-la, um dos melhores mecanismos disponíveis é a velha e útil ficção científica, afinal um espaço de criação onde pandemias e correlatos são moeda corrente. “Oxigênio”, recém-lançado na Netflix, vem à tona para cumprir esse papel, digamos, restaurador – com um título desses, autoexplicativo e incrivelmente atual, só resta a adesão.
“Oxigênio” retoma um tipo de tratamento estético, muito frequente do cinema blockbuster do século 21 – que poderia ser definido, na falta de uma terminologia própria, de “hibridismo acumulativo do terror”. No mesmo filme, acumulam-se situações e fetiches padronizados utilizados a exaustão em outras produções. O diretor de “Oxigênio” é o especialista Alexandre Aja, de “Predadores Assassinos” e o inacreditável “Piranha 3D”, um filme onde o hibridismo começa no próprio título. No filme em tela, Aja está mais cerebral: o núcleo básico é o confinamento claustrofóbico da personagem Liz. A sinopse oficial informa que Liz “não lembra quem é ou como foi parar em um receptáculo pouco maior que um caixão. Com o oxigênio chegando ao fim, ela precisa reconstruir sua memória a fim de encontrar uma saída para o pesadelo”. Claustrofobia é um dispositivo básico da linguagem cinematográfica desde que D.W. Griffith começou a fazer curtas – confira-se, entre outros, o emparedamento vingativo de “The Sealed Room” (1909), inspirado em Edgar Allan Poe (Roger Corman realizou sua versão do conto de Poe em 1962 com “Premature Burial”, estrelando o infalível Ray Milland – no Brasil conhecido como “Obsessão Macabra”). Mais próximo, em 2010, chegou às telas o indefectível “Enterrado Vivo”, onde um infeliz caminhoneiro que trabalha no Iraque se debate com o oxigênio minguante em um caixão e manda imagens para o Youtube. “Oxigênio”, afinal um mero elemento químico de número atômico 8, retoma de forma brilhante toda essa tradição e a projeta na contemporaneidade esquizofrênica que vivemos.
Alexandre Aja, como Luc Besson, é francês e igualmente bem sucedido no difícil e competitivo mercado norte-americano. Para realizar “Oxigênio”, retornou ao país natal: talvez por isso o filme tenha ganhado em complexidade, incorporando um certo esprit em sua concepção que permite uma leitura mais arriscada. São várias camadas de ansiedade: a claustrofobia, o medo da morte, e, sobretudo, a tecnofobia. Sim, a inteligência artificial, personificada no onipotente robô MILO (vocalizado de forma magistral por Mathieu Amalric), é a fonte do pavor que atravessa a narrativa, manipulador da genética humana e implacável condutor do destino de todos nós. O conceito de inteligência artificial, ou IA, condensa uma ansiedade monumental da sociedade nesse início de milênio: o genial “2001, uma odisseia no espaço” já anunciava esse espectro, na voz do enlouquecido HAL 9000. Mas os avanços da IA na última década, do big data ao 5G, prenunciam muito mais: prenunciam uma radical transformação no mercado de trabalho que se avizinha. Há quem afirme, por exemplo, que o populismo alucinado de Donald Trump assenta-se sobre a ansiedade latente da classe média americana de perder seu emprego por conta da IA – e não em moralismos exacerbados ou teorias conspiratórias. Uma ansiedade, naturalmente, universal: cada cultura assimila à sua maneira, e nisto a China parece levar vantagem (nessa toada, Trump seria um sintoma de imobilismo perceptivo, e a China outro sintoma de ansiedade). “Oxigênio” tem esse mérito: a ênfase na IA está na concepção mesma do filme, que vai se desdobrando à medida em que o enredo avança. Aqui, o espaço dramático subliminar é a (já) célebre “internet das coisas”, essa ideia-força que promete invadir nossas vidas: interconexão digital de objetos cotidianos com a internet, rede de objetos físicos capaz de reunir e de transmitir dados.
Liz, a claustrofóbica, debate-se não apenas contra o fim do oxigênio, mas também contra a tirania da IA/MILO: enquanto MILO organiza o ambiente capsular como se fosse a “internet das coisas” em ação. O dado macabro, entretanto, vem por conta da “criogenia humana” que “Oxigênio” utiliza: criogenia se pretende uma técnica de refrigeração vitrificada de corpos a uma temperatura de -196 ºC, a fim de interromper o processo de deterioração e envelhecimento (não confundir com congelamento). A ideia é manter os corpos nas mesmas condições durante vários anos, para serem reanimados em algum momento no futuro. Três laboratórios no mundo fazem esse serviço, dois nos EUA e um na Rússia: só nos Estados Unidos, 331 pessoas já estariam hibernando em tanques de nitrogênio líquido a 196 graus negativos, esperando acordar quando doenças incuráveis não seriam mais…incuráveis. Claro, existe uma forte polêmica científica sobre o assunto, que não cabe adentrar aqui: o que importa é considerar o uso dessa superposição de ansiedades – inteligência artificial, morte, criogenia humana – para a construção do espaço dramático de “Oxigênio”. A confecção do roteiro, a remissão bem dosada dos flashbacks e a excelência da atuação da atriz, Mélanie Laurent, concorrem para a intensidade e a fruição da trama. Prenda a respiração e aproveite.