Outubro
A Valsa de um País
Por Roberta Mathias
Durante o Festival do Rio 2019
Aguçada pelo clima pré-eleições de 2018, a atriz Maria Ribeiro decide fazer “Outubro” um filme que mistura ficção e realidade – tal qual parece se apresentar a estrutura do país. Ainda que flerte com essa linguagem, é no formato de diário que o filme ganha forma. Além de separar por datas iniciadas a partir de 15 de outubro, a atriz vai atrás de personalidades e especialistas que estejam de alguma forma envolvidos afetivamente com as eleições e cria uma espécie de ensaio audiovisual.
A direção é dividida com Loiro Cunha que, em tom agudo, sentenciou no MAM durante a apresentação da sessão especial no Festival do Rio de 2019, dentro da seleção da Mostra Première Brasil: Fronteiras: “Estamos aqui, continuaremos aqui”. Logo nas primeiras sequências do filme, uma Maria Ribeiro em choque observa da janela do quarto de hotel em São Paulo um manifestante em carro de som gritando “Essa menina é indigenista, ela é jornalista”, como se essas fossem características a serem combatidas. Como ofensas. No Brasil pré-eleição (e ainda hoje) ficou mesmo difícil entender o que era xingamento e o que era elogio. Entendendo a gravidade daquela semana muito particular, Ribeiro abandonou logo o vestido de noiva, mas não a analogia com o casamento.
Pouco antes, em setembro, o Movimento Ele Não também havia levado milhares de pessoas (principalmente mulheres) às ruas. A pergunta disparadora para Ribeiro foi: “Para quem eu diria sim hoje?” A analogia com o casamento explica o vestido e o certo grau de tensão que perpassa o filme. “Outubro” é um filme sobre o medo, sobre uma tristeza de fundo, como aponta a psicóloga Maria Rita Kehl, novamente entrevistada em um filme sobre os acontecimentos políticos no Brasil na programação do Festival (o outro foi “O Mês que não Terminou“). Nessa véspera de eleição presidencial, no entanto, podemos observar uma Maria Rita abatida, cansada e com medo por um país que “não está autoritário, não está repressivo, está psicótico”.
Pouco antes do dia da votação surgiu dentro do ambiente psiquiátrico e de saúde mental uma preocupação com pacientes que chegavam aos consultórios com um medo agudo. Essa tristeza, esse medo, acompanham a câmera dos cineastas ao longo do longa-metragem. A angústia, o desconforto. Talvez fossem essas as sensações que ligassem uma diversidade de pessoas (de um lado ou de outro) em um país que constantemente falha na manutenção de garantias básicas para a população.
Ao ver no time futebol um lugar seguro, Maria Ribeiro revela uma angústia muito própria após passar por uma nova separação, mas que – ao mesmo tempo – é de todos nós. O que fica? O que permanece? Maria pensa no time e, não despretensiosamente, anda com sua mochila do Fluminense para lá e para cá pelas ruas de São Paulo. Será que nossa referência de base é só um time? Pode um país se sustentar somente com a identificação à uma camisa amarela? Pode uma pessoa se sustentar somente com seu time de coração?
É sobre essa falta de segurança que Marcos Nobre fala, sobre uma energia pós 2013 que não foi canalizada e ficou solta no ar, como uma pipa esperando encontrar o próximo jovem que a fará alçar voo. O filósofo, outra referência procurada nos demais filmes que abordaram as eleições, apresentava tal qual Kehl um olhar cansado, mas em outros momentos parecia se nutrir dessa energia que ainda estava pairando no ar.
No fim, parece sempre que estamos em um jogo de batata-quente. O que talvez explique, como já apontei na crítica de “A Nossa Bandeira Jamais será Vermelha“, uma certa apatia dos opositores. A própria Ribeiro, em determinado momento do filme, se diz incomodada com o pouco que Ferndando Haddad (então, alternativa a Jair Bolsonaro) fala em um dos comícios.
Já sabemos o fim dessa história. No dia 28 de outubro de 2018, Bolsonaro se tornou presidente de um país de dimensões continentais. Um país que tem uma posição central no bloco latino-americano. Moradora da Barra, assim como o Presidente eleito, “Outubro” nos mostra a cineasta acordando em 29 de outubro e escutando os fogos e as músicas cantadas pelos eleitores dele. Ela se recusa, no entanto, a terminar a sua narrativa aí. Vai buscar outra música para embalar nossos ouvidos. A saída de Ribeiro não pode ser esvaziada. Ela não se configura em uma negação sobre os fatos, mas em uma busca pela não paralisia. A voz doce e concomitantemente forte de Gilberto Gil nos dá esperanças de que é possível fazer algo. Nem que seja cantar.