Os treze novos trabalhos videoarte de Patricia Niedermeier
Delírios, conexões, loucuras, viagens e transes no corpo de uma atriz que aceitou ser possuída
Por Fabricio Duque
Delírio, loucura e transe. Para ser, a arte precisa transcender a sua própria existência. Seu artista deve deixar de ser o que é para se embrenhar na perda de tudo que conhece. Não é um processo de transmutação, tampouco de renascimento, mas sim adentrar na suspensão da própria sanidade, encontrando assim na loucura o sentido de toda essa criação. É um delírio. Um transe. Uma viagem para dentro à procura dos vazios internos, para preenchê-los com ressignificação abstrata e com a mais intrínseca das liberdades já experimentadas pelo ser humano, enquanto matéria de vida. Nesse estágio de percepção etérea em camadas do inconsciente, não há julgamentos maniqueístas. Não há convenções sociais. Não há bizarrices e/ou transtornos. Cortar a orelha, por exemplo, significa uma expressão desse imersão artística. Saltar no vazio também. Essa transcendência atinge níveis sensoriais, emanando conexões-interferências nas sensibilidades de outras pessoas ao redor, que interpretarão cada movimento dessa arte como identificação, dentro de seus subjetivismos. É também por isso, que uma vídeo-arte não é para ser explicada, definida, padronizada. Muito menos entendida. A arte imagética com o movimento é para ser perceptiva, contemplativa e recebida. Cada sentido livre à espera do outro a fim de que todo esse quebra-cabeças emocional possa ser juntado e sua plenitude espectral. Só apreciaremos se abandonarmos todas nossas defesas e pré-conceitos de prontos achismos. É uma possessão e temos que permitir que o artista use nosso corpo da forma que desejar.
Sim, todo essa introdução é para falar da atriz-performance Patricia Niedermeier que apresentou na noite da última terça-feira, 30 de janeiro, treze videoarte compilados no média-metragem “Viagens 2024”, um “diário cinematográfico” realizado em Amsterdã, Holanda; Paraíba, São Paulo e Belo Horizonte, Brasil, sobre as viagens que a dupla Patricia e Cavi Borges fizeram juntos nos últimos dois anos. Um deles, inclusive, é estreia exclusiva. O videoarte “Por que não?” está em exibição em Veneza, que começou dia 19 de janeiro até 02 de fevereiro deste ano, no The Body Language – Venice International Art Fair 2024, do Its Liquid Group. O público carioca teve o privilégio não só de assisti-lo, mas também conferir mais doze experiências-performances na tela. Esse novo trabalho contou com a ajuda de Marisa Aragão, Jorge Jaber, Tainãn Hsu e João Lanari. E Patricia, neste mesmo dia, comemorou aniversário. Não tem presente melhor em ter seu olhar absorvendo a própria imagem fundida no momento da plenitude da criação. Não mesmo.
“Viagens 2024”, como foi dito, é uma experiência no plural em exercícios de linguagens. Comporta-se como um pot-pourri de trechos das últimas atualizações-consequências de viagem dos dois realizadores (“Ensaios Sobre Yves” e “Tudo sobre Maya Deren“), esta que por sinal é uma expressão idiomática que significa “captar imagens ao máximo, as interferindo com contemporâneas manifestações artísticas”. Para essa dupla yin e yang, tudo o que se vê é material, é arte positivista. Tudo é uma possibilidade de criação. Tudo entra no processo da “alquimia” decantada, como Patricia gosta de definir. Há um que de Rei Midas. Mas o que se enriquece aqui é a personificação da forma. De um estágio inerte à espera de novos elementos para entrar em combustão e assim viver. Cada uma desses videoarte é um complemento, desde os créditos de abertura que evocam Jean-Luc Godard e “Pierrot Le Fou – O Demônio das Onze Horas” até a invasão imersiva em Yves Klein e Maya Deren. Alguns podem sentir um tom surrealista pelo jogo cênico com a metafísica imagética, mas na verdade o que esses artistas querem mostrar é o nada que acontece ao tudo. É o respiro. O descanso. A hesitação. É o momento invisível que nosso cérebro para de pensar e sente por um ínfimo instante o propósito-segredo de toda a existência. É “onde tudo se decide”. Para se chegar até esse momento é preciso desistir. E assim, em esquetes experimentais que tentam encontrar a linha equilibrada exata entre lucidez e loucura, esses videoarte trazem outras subjetivadas inferências. Quem sabe Ingmar Bergman e seu xadrez, em que talvez nós somos vida e morte ao mesmo tempo. Quem sabe o cavalo do húngaro Béla Tarr. Quem sabe os espelhos de Maya Deren (ah, sim, esta foi fácil – explícita até – visto que praticamente tudo representa ensaios sobre Maya). Que sabe as telas do quarto não trazem a prisão digital (mas de ondas analógicas) de David Cronenberg. Mas também os girassóis podem ser apenas girassóis. E os números apenas números e não metáforas para contagens regressivas.
Sim, “Viagens 2024” causa uma sucessão de “viagens” na gente. Uma delas é quando Patricia está em performance-entrega na rua, no meio de um chafariz modernizado. Há gritos atravessados. Pois é, talvez essa imagem, esses movimentos e esses sons só aconteçam por causa de nossas diversas percepções, porque nós buscamos entender e compreender esse conceito em nossa bagagem já vivida. Então talvez todo esse significado da imagem que vemos está na gente. Nós somos o real significado. E o propósito daquela imagem existir. Tudo aqui é uma costura de ideias, em brincadeiras sonoras de articulação cognitiva. Nossas sinapses são cobaias para receber esses encontros sensoriais e altamente particulares a cada um. “Quanto tempo?” Será que todos chegarão à conclusão quando Patricia está na água, em um dos videoarte, de que a mise-en-scène criada remete a de um filme antigo, como “Limite”, de Mário Peixoto; “Aurora”, de F. W. Murnau; “O Atalante”, de Jean Vigo? Pois é, é aí que reside toda a maestria de uma videoarte: experimentar realidades, fantasias, projeções e ensaios existencialistas em uma possível e orgânica metafísica estética do que é e/ou do que já se foi. “Quanto tempo ainda me resta de vida? Quem será a última pessoa? Há o neon que parece ligamento vital, uma veia de conexão-fluidez, como uma missão de sempre ter que ir, de nunca de questionar. De dar sentido, mesmo “sem saber quem vai ser a última pessoa a se lembrar de mim”. Há a Alice sem a maravilha do caminho, que viu no Ali o ser e não mais na andança. E há a gravidade zero. Não há como negar, “Viagens 2024” é para se permitir “viajar” e experimentar toda a sua força de transe-possessão corporal.
1 Comentário para "Os treze novos trabalhos videoarte de Patricia Niedermeier"
Lindo texto! Brilhante texto! Inteligência e sensibilidade ! Caminhos se abrem na percepção do filme! OBRIGADA Vertentes pelo presente na vida!!!