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Os Sonhadores

Depois da Revolução

Por João Lanari Bo

Festival de Veneza 2003

Os Sonhadores

Os Sonhadores”, realizado em 2003, pode ser considerada a última grande obra de Bernardo Bertolucci, cineasta italiano de alta expressividade – ele ainda faria mais um longa, “Eu e você”, de 2012, que dirigiu na cadeira de rodas. Faleceu em 2018, aos 77 anos, tendo recebido inúmeras homenagens no final da vida, embora seu nome recentemente tenha sido associado às denúncias de estupro de Maria Schneider, durante as filmagens de “O último tango em Paris”, em 1972. Em “Meu Nome é Maria“, produzido em 2023, a diretora Jessica Palud traz a trama biográfica da atriz, desde sua ascensão meteórica como estrela ao lado de Brando até os efeitos psicológicos que aquela agressão deixaram nela. O crítico Pedro Salles intitulou sua resenha do filme para esta Vertentes como Efeitos do abuso e da insistência do olhar masculino.

Se estivesse vivo, Bernardo participaria com vigor na polêmica a qual, aliás, foi intensa quando do lançamento do filme: levantou controvérsias na Itália a ponto do diretor ser condenado e sentenciado a quatro meses de prisão, além da perda de direitos civis, inclusive de votar. Controvérsias e polêmicas, por óbvio, sempre foram uma das estratégias desse culto e politizado realizador, de preferência envolvendo sexualidade e política. Na época de “O último tango…” estava seduzido pela leitura de Georges Bataille, o arauto do erotismo. Basta conferir “Os Sonhadores” para dar conta que sexualidade e política continuaram firme e fortes como eixos estruturantes, se assim podemos dizer, na estética de Bertolucci.

As cenas de sexo dos três protagonistas – um francês e uma francesa, Theo (Louis Garrel) e Isabelle (Eva Green), irmãos gêmeos, e um americano em Paris, Matthew (Michael Pitt), todos em idade universitária – são intensas e arrebatadoras. Sexo funciona como força de comunicação e autoexpressão, algo totalmente distinto do que estamos habituados a ver no cinema convencional contemporâneo, onde os corpos são frequentemente representados como imagens impessoais, agentes de narrativas igualmente impessoais. Adicione-se o preciosismo visual – ângulos e movimentos de câmera, luz e montagem sempre ousadas – e não é difícil constatar a influência de Bertolucci em diversas gerações de realizadores, em diferentes países e culturas.

Sexualidade e ideologia: “Os Sonhadores”, inspirado em livro do escritor escocês Gilbert Adair, que escreveu o roteiro, coloca em cena três personagens improváveis em plena Paris, maio de 1968, período de grandes protestos estudantis e trabalhistas que se espalharam pelo mundo. O trio se encontra na escada que levava ao antigo auditório da Cinemateca francesa, no Palais de Chaillot, onde ocorria um dos eventos deflagradores da rebelião – a revolta contra a demissão do seu diretor, Henri Langlois, por decisão do Ministro da Cultura, o escritor Andre Malraux. As sequências inicias reproduzem imagens da ocasião, entre elas um acalorado desabafo do ator-fetiche da Nouvelle Vague, Jean-Pierre Léaud – que volta anos depois a representar a mesma fala no filme de 2003.

O protesto é a senha para que esses três cinéfilos de carteirinha se juntem e acabem embarcando em uma viagem ao fim da noite – ao longo do filme, na maior parte passado intramuros no apartamento labiríntico dos pais, sexo e desafios envolvendo cenas consagradas de filmes carregam a viagem para um clímax de voluptuosidade e, no limite, incesto. Os clips incluem cenas dirigidas por Samuel Fuller, Howard Hawks, Robert Bresson e Jean-Luc Godard, além de impagáveis performances de Greta Garbo e Buster Keaton. A introjeção desses momentos luminares do cinema funde-se de modo irresistível à atração sexual, ou ainda, à abundância do sexo. Vinhos resgatados da adega paterna e haxixe do Nepal concorrem para o arrebatamento final, sonorizados com músicas de Jimi Hendrix, Bob Dylan, The Doors, The Grateful Dead, Edith Piaf, Charles Trenet, além de trechos de trilhas sonoras de filmes de Godard e Truffaut.

Enquanto essa espiral de excessos evoluía freneticamente, do lado de fora a revolução explodia. Os acontecimentos de maio de 68 em Paris tornaram-se um ícone na representação das sublevações do nosso tempo, gerando incontáveis livros e filmes, mais ou menos romantizados. Em “Os Sonhadores” eles aparecem como alteridade, um Outro coletivo que entra na narrativa como instância de realização do desejo social de mudança. Algo que as duras lições da história que se seguiram – e que se seguem, hélas – terminaram por abafar, mas que o núcleo desejante e insano que move o trio de protagonistas insiste em levar adiante.

5 Nota do Crítico 5 1

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