Os Primeiros Soldados
O que se aproxima
Por Vitor Velloso
Durante a Mostra de Tiradentes 2022
“Os Primeiros Soldados” já consta como uma das obras mais marcantes do cinema brasileiro na primeira metade do ano. O filme assinado por Rodrigo de Oliveira é capaz de provocar no espectador, sem maniqueísmos, uma sequência de emoções que encontram seus momentos mais belos nas interpretações individuais de seus protagonistas.
A narrativa parte de uma crescente inquietude de Suzano (Johnny Massaro) e se estrutura em torno de um eixo dramático que não se encerra na particularidade. Aqui, a montagem paralela cria uma carpintaria melancólica que vai abarcando seus personagens para uma tragédia anunciada, mas com a possibilidade de um caminho feliz. Se a primeira cena é uma ruptura direta na representação de uma sociedade conservadora, a construção da obra é a resposta da marginalização, do preconceito e das incertezas que acometem seus personagens.
Rose (Renata Carvalho) é introduzida como uma força imediata, capaz de parar o trânsito e mostrar que seu corpo é fruto de suas próprias atitudes e lutas. Assim como Humberto (Vitor Camilo), registra a força da performance e flerta com o passado. Porém, “Os Primeiros Soldados” consegue costurar essas narrativas através de um delicado recorte dramático, onde as interseções são feitas em diálogos que explicitam a preocupação e o afeto. Um exemplo disso é a reação de Suzano ao escutar o que aconteceu recentemente com Rose e a maneira como as preocupações passam a unir aqueles que se encontram à margem dos marginalizados. A primeira onda da epidemia de AIDS no Brasil, é representada entre a libertação, o retorno e a melancolia, em um pêndulo que cobra da mortalidade uma tematização das felicidades do cotidiano. Não por acaso, o filme caseiro se torna o motivo dos breves sorrisos que tomam conta do isolamento da segunda metade da projeção.
Em contraste, existe uma aproximação da verdade que vai cerceando essas relações, a própria morte enfrenta o tabu da virada do ano, onde a comemoração da chegada de 1983 é acompanhada da tristeza de Rose no palco. Nesse cenário aparentemente contraditório, onde as emoções se digladiam entre o desespero e a esperança, aquilo que afeta os corpos é uma chaga dos preconceitos que mantém uma prisão no que deveria ser debatido pela sociedade e pelo Estado. Não por acaso, Suzano performa diante de seu sobrinho atrás do tecido vermelho, nesta imagem síntese da liberdade individual que dá lugar ao rosto de preocupação por algo que não se compreende.
Quando “Os Primeiros Soldados” chega à metade, um elemento dramático é introduzido como uma possibilidade de encerrar a angústia. O suicídio não é posto como uma questão irrelevante, pelo contrário, é tratado com o respeito de uma produção que incorpora a dificuldade de seus personagens, representando a realidade desse cotidiano. A fotografia não se limita no realismo, passa a traçar as luzes que invadem a residência com maior vigor, enquanto os contrastes vão dando lugar à uma certa uniformidade. Tanto visceral, quanto real, esses fantasmas se aproximam, mas a frase: “eles tentam nos matar desde que o mundo é mundo, é isso é o que eles fazem. E o que a gente faz é sobreviver sendo linda” é a oposição fatal da súplica de Suzano: “mente para mim”. Esse tom grave e sombrio dos atritos na maneira de lidar com o presente, temendo o futuro, está presente na direção de Rodrigo de Oliveira que transita entre a fixação de seus planos, no rigor de seus enquadramentos, e a proposta de uma pessoalidade que se agiganta na reta final. A montagem econômica das pequenas descobertas, prepara o espectador nos pequenos causos trágicos, antecipando as emoções.
Impossível encerrar o texto sem lembrar de uma história contada por um grande amigo, que se emociona ao descrever a imagem de um ex-companheiro após anos lutando contra a doença e percebendo que o havia perdido para a ignorância da sociedade. Uma das coisas que “Os Primeiros Soldados” consegue sintetizar com o auxílio das brilhantes interpretações centrais, é a culpa e a compreensão estampadas na tristeza dos que ficam.
Clara Choveaux, Johnny Massaro, Renata Carvalho e Vitor Camilo estão brilhantes.