Os Palhaços
Metalinguagem do palhaço
Por Daniel Guimarães
Não me considero grande entusiasta dos espetáculos circenses. Evidente que sem qualquer preconceito ou objeções aos shows protagonizados por palhaços, mas sempre me pareceram gerar certo tédio. Por vezes os achei interessantes, mas de uma forma mais curiosa do que de encanto autêntico. Mesmo em “A Estrada da Vida”, do mesmo Federico Fellini, – embora a abordagem esteja em espectros completamente diferentes – os “truques de mágica” não me mostravam atração. Com isso em mente, não deveria me fascinar uma obra como “Os Palhaços”, declaração de amor aos personagens de rostos pintados. Contudo, fui surpreendido, mais uma vez, por um formato que, aí sim, amo: o cinema.
Não só as encenações são extremamente divertidas, mas pude perceber a influência do circo não só na vida e filmografia de Fellini, mas também para o próprio cinema. Algo que, talvez, seja o maior subtexto do longa. O filme aborda a produção de um documentário que retrataria a vida em declínio dos circos e entrevistaria diversas figuras do ramo, aposentadas, históricas de diversos países. Junto disso, intercala encenações de todos os tipos de espetáculos escandalosos.
Desde os primeiros planos, já se percebe a essência o filme. Uma criança, filmada por trás, observando encantada a imensidão de um circo do lado de fora. Visivelmente um retrato de como o diretor italiano via – ou, pelo menos, se recorda – de sua infância. Ao entrar na cabana do circo, o movimento de câmera instiga uma mística ao filmar a entrada da tenda e, aos poucos, ir adentrando aquela vastidão do palco de circo.
Há, entretanto, algo mais poético ainda do que a própria adoração ao circo e a melancolia de uma época onde os espetáculos eram adorados. Fellini parece entender que, como em sua própria vida, os palhaços e peças circenses tem relação direta com o cinema. Pesando sobre como são as comédias burlescas, essa ideia possui todo sentido. Afinal, gags visuais presentes em Buster Keaton encontram muitas inspirações nos absurdismos dos palhaços. E, se essa relação não estivesse já encorajada pelo diretor, em certo momento vemos a “filha de Chaplin”. Não posso deixar de pensar que, mesmo Victoria Chaplin sendo artista circense, Fellini a citou dessa forma como uma alusão ao cinema do pai e o que ele representa.
Dentro disso, aliás, o longa apresenta uma camada de metalinguagem interessante. “Os Palhaços” é um filme sobre a gravação de um documentário, intercalando com imagens de circo que se relacionam com o cinema não só de Fellini como da comédia burlesca em um todo. A sensação é similar – embora em escala menor – ao de assistir “O Sanduíche” (2000), curta de Jorge Furtado que extrapola a metalinguagem e a usa como temática do que é ou não real.
Em matéria de linguagem cinematográfica, é interessante a maestria do diretor ao perceber seus recortes narrativos. O que mostrar e quando mostrar. Evidente que, através de longas sequências de peças no circo, o diretor deseja re-encenar a experiência que tinha ao frequentar as peças em sua infância. No cinema, entretanto, a recepção imagética é outra. Se tem o poder de recortar a realidade em fragmentos e conduzir o olhar. Então, no meio de uma confusão de palhaços, não estamos somente em uma plateia do circo alternando olhares entre os artistas para vermos se conseguimos identificar o que cada um está fazendo. Fellini faz isso por nós e nos condiciona esses específicos efeitos cômicos dentro do caos.
O roteiro é coeso ao estruturar a narrativa em diversas cenas de causa e consequência. No primeiro ato, por exemplo, há uma cena onde vemos a reação da criança em sua primeira experiência ao assistir um show de palhaços. O narrador nos diz que é um medo, de difícil verbalização . Sem conseguir descrever a sensação, decide então nos mostrar imageticamente através outras situações, que geram o mesmo sentimento. A estética é sensível, o discurso não. Toda essa sequência, além de engraçada, cria uma transmissão sensacional de sentidos para o espectador.
Seguindo a coesão narrativa, a montagem é eficaz ao intercalar os momentos de “depoimento” sobre a situação em que se encontra a cultura de circo com os próprios espetáculos ensaiados. Se nas conversas durante a filmagem há um assunto doloroso, como o fim ou o declínio do circo, corta-se para uma sequência de um espetáculo de palhaços melancólicos. Na mesma linha, uma recordação feliz sendo contada, cortará para um espetáculo engraçado e contagiante. E a trilha de Nino Rota acompanha perfeitamente tais momentos, com belas composições que tornam essa experiência “circense-cinematográfica” de Fellini ainda mais prazerosa.