Os Fabelmans
Tudo para meu pai
Por Fabricio Duque
Festival de Berlim 2023
Na vida, há um exato momento que nos diz quando estamos prontos para iniciar um projeto. É preciso aguardar para que as ideias concluam o processo de maturação. Alguns não se dão conta disso e atropelam esse tempo. O realizador norteamericano Steven Spielberg tanto sabe que esperou mais de duas décadas para colocar em prática seu mais recente filme, “Os Fabelmans”. Se pensarmos assim, por que cargas d’água é tão urgente lançar análises? Assim, preferi esperar o momento certo, que chegou durante o Festival de Berlim 2023, em pré-estreia (sim, a Alemanha atrasou o lançamento nos cinemas para manter a sessão de gala com a presença do próprio cineasta e com direito a um coletiva de imprensa). Sim, estar no mesmo recinto que Steven Spielberg é uma sensação que não se consegue descrever tão rapidamente. Nós podemos sentir sua paixão pela cinema. Mas este filme em questão aqui, ainda que corrobore seus temas de cunho pessoal, é particularmente diferente, porque o diretor de “E.T. – O Extraterrestre” temia pela reação de seus pais e porque a decisão aconteceu em 2021, em meio à pandemia, período trágico e vulnerável que gerava em todos o mesmo sentimento de que não iríamos sobreviver. Que o mundo acabaria. Nada mais metafórico para um judeu falar sobre sua infância. Em um filme que recriou exatamente sua casa do passado no Arizona. Sim, é muito autobiográfico. Até seu título “Fabelmans” pode ser traduzido por “Fábula dos Homens” ou “Homens da Fábula”.
Antes, para que possamos traduzir melhor seus filmes, é preciso aceitar que este realizador norteamericano tem em sua essência uma nostálgica inocência emocional, importada de sua memória afetiva, como se mesmo aos 76 anos, esse diretor tentasse a todo instante conservar um comportamento de menino. De criança que não quer crescer. Seu olhar, que encontra a de um nerd tímido, de simples, diretos e básicos quereres, deseja estender, incondicionalmente e ao máximo, a magia à moda de um Peter Pan, por exemplo. Dessa forma, esse tom mais sentimental, que sempre emprega em suas obras, nos fornece a sensação de uma fantasia da própria realidade, transmutada, propositalmente, de forma inacessível e mais utópica. Steven Spielberg filma suas questões pessoais pela ficção idealizada, mais distante da verdade documental. Sua paixão é o cinema, como já foi mencionada no parágrafo anterior (e que inclusive já foi até abordado – e referenciada – na série de televisão “Dawson’s Creek”).
Em seu mais recente longa-metragem, “Os Fabelmans” (2022), integrante da lista de indicados às principais premiações do universo cinematográfico, como o Oscar deste ano (vencendo inclusive Melhor Direção no Globo de Ouro 2023, este anunciado no último dia 10 de janeiro), traz a metalinguagem que Spielberg tanto almeja. Dessa vez não tem a inferência do “se”. Este é explicitamente uma ode de amor e de devoção à sétima arte. De transformar “sonhos assustadores” em realidade. De lidar com seus fantasmas. E talvez, quem sabe (ele não soube responder na coletiva de imprensa do Festival de Berlim), transformar “pesadelos” acontecidos em eternizadas memórias ficcionais. Cada um tem um jeito de lidar com seus traumas. Talvez essa seja a dele. Porém, lógico, todo projeto pessoal tende mais à desconexão. É necessário o distanciamento a fim de se construir toda a trama. Ainda que verdades venham à tona (sim, é o objetivo), a honra de quem é exposto precisa de proteção. Suaviza-se as causas e consequências por medo. O resultado então tende ao mais orgânico sentimentalismo, artifício este conduzido por vazios temporais, ecos, eufemismos, alívios cômicos e muita estética visual (esta que cria no espectador a sensação de cinefilia).
“Os Fabelmans” utiliza tantos gatilhos comuns “mascarados”, com tantos estímulos as nossas analógicas e nostálgicas memórias afetivas, que no fim chegamos à conclusão de que Spielberg conseguiu fugir de sua própria terapia. Talvez não tenha aguentado o processo de cura. Sim, “alguns sonhos são assustadores”, embaso tudo com um dos diálogos do próprio filme, em 1952, do “O maior espetáculo da terra”. Aqui, o longa-metragem desenvolve-se pelos detalhes e por preciosismos do olhar. Na história, uma imagem vista no cinema muda a vida do protagonista, redescobrindo a magia, desejos e quereres, e ressignificando com realismo as luzes de Natal, desse garoto, que é a “cara” do Spielberg mais novo, que vivencia sua infância entre jantares em família e conversas-aulas sobre “câmeras, que são memórias magnéticas”. Nosso personagem mirim começa a filmar, explorando ângulos e mostrando todo procedimento técnico de montagem da revelação do filme. “Tudo acontece por uma razão”, diz-se. Sua paixão-obsessão é tanta que não para e realiza obras épicas durante o acampamento de escoteiros. “Os Fabelmans” é mesmo sobre a família. Sobre tipos familiares (idiossincráticos e de arquétipos mais caricatos). Sobre o resguardo do universo familiar. Que dá liberdade total aos pais e julga a irmã como moralista. E/ou que cita frases como “Arte te dará os louros, mas te deixará sozinho e um exilado no deserto”.
Desse momento em diante, Spielberg sente mais confiança em aprofundar o peso do tema. Constrói uma teia imagética de descobertas. Sua personagem “aprende a colocar emoção na tela”. Cada instante filmado é uma peça do quebra-cabeças, que explicita a referência a Robert Bresson, Ingmar Bergman, a John Ford, e óbvio a David Lynch. “Quando o horizonte está no fundo é interessante, quando horizonte está no meio é chato pra caramba”, “ensina”-se. “Os Fabelmans” só aconteceu após a morte dos pais de Spielberg (aqui interpretados por Michelle Williams e Paul Dano). Mas o filme é dedicado apenas a seu pai, Arnold. Será este um arquivo em que a verdade de dentro finalmente foi revelada para fora? Será isso tudo apenas sobre seu pai?